sábado, dezembro 31, 2005

Passagem do ano





"Que horas serão isto?"
jcpires



O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o
calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o
clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do
acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos
séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.




Carlos Drummond de Andrade



pindaro

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Um ramo de doze badaladas


FALAVAM-ME DE AMOR



Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.



Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba



pindaro

A infância ressurecta





NATAL À BEIRA-RIO


É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?


David Mourão-Ferreira,
Obra Poética 1948-1988

pindaro





terça-feira, dezembro 13, 2005

A sombra tempera a luz


“Os piratas, esses sim, tinham aplomb e conheciam as sombras”
anónimo




É o que se tira da carta à rainha, da pluma de Sir Walter Raleigh:

“Dêem-me a minha concha de silêncio,
O meu bordão de fé, para me amparar,
A minha escritura de júbilo, imortal dieta,
A minha garrafa de salvação,
A minha toga de glória, verdadeiro penhor de esperança,
E então farei a peregrinação.”

O navegante, dominador que era de obscuridades subtis, tinha por certo lido os ensinamentos do grande Giordano Bruno em “The shadows of ideas”:

“A sombra tempera a luz...
As sombras não se dissolvem,
Mas mantêm e protegem a luz que há em nós
E conduzem-nos ao conhecimento e à recordação.”

Mais tarde, Sir Thomas Browne, gourmet de trevas e sombreados, dado a sínteses, dobrou esta esquina bicuda com um simples adágio no imperecível “Urne-Burial & Garden of Cyrus”:

“A noite do tempo supera em muito o dia.”

(Percebe-se a tirada de Virgínia Woolf: “But why fly in the face of facts? Few people love the writings of Sir Thomas Browne, but those who do are of the salt of the Earth.”)


Foi depois que Voltaire, dando moldura às estátuas e aos vultos, arrematou todo o tema das sombras com um belíssimo sinal da cruz:

“É o escândalo público que faz a ofensa,
pecar em segredo não é sequer pecar.”




Solino

A BELEZA DO RUMOR ENTRANHADO






“ O desprazer é já menos, porque toda a cousa que se faz, de que nos não praz, podemos dizer com verdade que nos despraz dela, ainda que seja tão ligeira que não sintamos.”
D. Duarte (Leal Conselheiro)



D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Almeida Garret e Pascoaes, entre outros vultos antigos, tinham a palavra saudade ( soidade para D. Dinis) como um exclusivo pátrio, um termo só da nossa terra, intraduzível.

Dizia mesmo o Visconde João Baptista que “... o sentimento por ele representado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja um vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa...”

Só mais à frente, século passado adentro, tal ideia, quase mágica, foi removida.

De facto, outras nações têm para a saudade um termo só seu: o galego tem soledades ou soedades; o catalão, anyoransa ou anyoramento; o italiano, desio ou disio; o romeno doru ou dor; o sueco, saknad; o dinamarquês, savn; o islandês, saknaor, e o alemão sehnsucht.

O filólogo Manuel de Melo abriu o capote a este bicho, com luzimento, em Notas Lexicológicas.

Falando das canções melancólicas dos romenos, Cratiunesco volteava sobre doru:

“Ce mot semble venir du mot latin desiderium, dont il exprime tous les nuances – le regret d´un bien perdu, le chagrin que cause son absence, l´ésperance de le recouvrer, le désir d´un bonheur, que l´on ne connait point encore et l´ivresse que en accompagne la posséssion.”

E, em francês, dava-se ao doru do poeta Alecandri o sentido de “désir mêlé de regret”.

Vamos, ainda, ao Purgatorio, com Dante:

“Era giá l´ora che volge il disio
Ai naviganti, e intenerisci il cuore
Lo di che han ai dolci amici addio;

E che lo nuovo peregrin d´amore
Punge, se ode aquilla di lontano,
Che peja il giorno pianger che si more”

( “C´était déja l´heure qui réveille les regrets
des navigateurs et attendrit leur âmme”, etc.
-Fiorentino)


Saudade, essa palavra para uma “mimosa paixão da alma” (D. Francisco Manuel de Melo), não é só nossa.
E é de folgar que seja assim.
O contrário seria uma desordenança.
Das grandes.



Leonardo

Cesta de frutos de fuego

TUS OJOS


Tus ojos son la patria
del relámpago y de la lágrima,
silencio que habla,
tempestades sin viento,
mar sin olas, pájaros presos,
doradas fieras adormecidas,
topacios impíos como la verdad,
otoño en un claro del bosque
en donde la luz canta en el hombro
de un árbol y son pájaros todas las hojas,
playa que la mañana
encuentra constelada de ojos,
cesta de frutos de fuego,
mentira que alimenta,
espejos de este mundo,
puertas del más allá,
pulsación tranquila del mar a mediodía,
absoluto que parpadea, páramo.


Octavio Paz


pindaro

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Tem muitos ângulos

"E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia."
J.C.P.




"(...) Não, nisto de alguém se interrogar ao espelho, olhos nos olhos, é consoante. Tem muitos ângulos - e tu estás aí, que não me deixas mentir. Vários ângulos. Há quem procure, santa inocência, fazer um discurso de silêncio capaz de estilhaçar o vidro e há quem espere receber, por reflexo da própria imagem, algum calor animal que desconhece. Seja como for, o que dói, e assusta, e é triste e desastradamente cómico neste exercício, é o pleonasmo de si mesma em que a pessoa se transforma. Repete-se. Se bem que com feroz independência (todo o seu esforço é esse) repete-se em imagens controversas que a possam explicar. (...) "


J. Cardoso Pires


pindaro

sexta-feira, dezembro 09, 2005

À espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa




Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve
Virgilio Ferreira


"Que se saiba há um único homem que se põe de pernas para o ar como as personagens de Chagall. Por exemplo: está muito bem a comer, surge um rafeiro e ei-lo de sapatos mais altos do que a toalha («Detesto estes cabrões, detesto estes cabrões, detesto estes cabrões») a navegar no azeite do bacalhau como os violinistas do pintor à deriva na tela. Por exemplo: a gente sobe à noite os degraus do elevador da Bica, iluminados de lado de taberna em taberna, eu a cambalear de cansaço nas escadas e ele a flutuar à minha volta como um anjo de óculos, conversando comigo de Antonioni e Godard, primos distantes, com relógios e amantes abraçados em torno do blusão. E há os bares, os cabisbaixos bares tristes de Lisboa, tumulares e desesperados, que o gás ilumina de pavios de azeite amarelo com duas pedras de gelo, debaixo da ponta acesa do cigarro americano, em homenagem a Hemingway e a Fitzgerald. E os restantes flibusteiros connosco. Artur Semedo, a servir atrás do bigode fino a sua ironia de Capitão Blood benfiquista; Dinis Machado, sempre a apear-se de um comboio de inocência perpétua, de sapatinho elegante e sobretudo à George Raft; e eu, o último e mais espantado da troupe, calado, de queixo numa água das pedras vazia. Quando anoitece, José Cardoso Pires começa a ganhar consistência no interior da roupa, íntimo de barmen e do labirinto estranho em que Lisboa se transforma, balizada de chafarizes e polícias que perderam, desde há séculos, o costume de sorrir. As árvores pingam trevas em cima de nós, os prédios aproximam-se, como as ovelhas, para adormecerem, encostando umas às outras os quadris das varandas. George Raft abotoa melhor o sobretudo. O Capitão Blood, de olho aceso para recordações distantes, ajusta-se na luva preta e no emblema do Colégio Militar onde moeu os miolos dos tenentes e fez coçar de aflição os sovacos dos maiores. E eu alinho um segundo gargalo de água das pedras à ilharga do primeiro, enquanto José Cardoso Pires levanta as duas mãos para se lançar no espaço rarefeito de fumo a explicar Jack Nicholson. Às duas da manhã, quando as rugas, piedosamente apagadas pela ausência de sol, fazem de nós um grupo de adolescentes à espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa, e os empregados dos bares circulam entre as mesas com a diligência das senhoras que procedem à recolha das esmolas no ofertório das missas, movidos pelo afã cristão da cirrose, saímos para o ressonar a estores soltos dos bairros de Lisboa, o Dinis ocultando o revólver no sobretudo impressionante, o Artur, corsário do celulóide, a ferver de ideias de tal forma que o bigode lhe borbulha, eu a arrotar a água das pedras nas esquinas, que é a minha forma canina de erguer a perna e urinar, e o Zé, granito sem peso, à procura do Dupont nos bolsos para nos converter melhor a um golo do Nenê. E é ele o único de nós que voa, sem peso, por cima das mandíbulas das camionetas do lixo e dos pesadelos dos escriturários, tripulando a nuvem de um Renault branco que se some, a tremer, sobre os telhados, rumo às folhas de papel A4 que são os lençõis em que por fim nos deitamos, a rechear de ossos o pijama e de palavras adiadas os rectângulos das páginas. Hei-de informar-me se o Zé não dorme sem tocar nelas, ensanduichado pelo diálogo de duas personagens, apesar do lastro do mar da Caparica por dentro da cabeça e das folhas das árvores de São João de Brito ao comprido do sangue. E acorda no dia seguinte estremunhado, rodeado de gaivotas, por cima do hálito de baunilha do vendedor de gelados da Praia da Rainha. O hóspede de Job, meu Amigo."


Cardoso Pires visto por... António Lobo Antunes
in Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 101-103
(in CITI)
pindaro

Que horas serão isto?

" (...) No espelho os olhos só se vêem reflectidos noutras coisas, segreda-me por cima do ombro o honorável William Shakespeare a páginas tantas (e com franqueza, deitam um bafo podre, estas palavras). Mas nem assim, José continua na dele. José é José, suspeita que o querem despir do passado para que fique incapaz de o reconhecer quando lho puserem pela frente na primeira oportunidade. E defende-se, não desarma. Daqui a pouco está com certeza a citar Santayana (não me admirava nada) e a sublinhar desgraças. Revê exemplos, concita mortos porque (palavras de Santayana, eu não dizia?) «quem esquece o passado arrisca-se a vivê-lo outra vez» e ao chegar a este ponto não adianta mais. Disse. Ou melhor, eu disse.

Mas fumar ao espelho não é só ver para trás olhando de frente. É também um modo-josé de futurar, para lá do rosto que o repete e que fumega. E aí, deixa que te diga, o pessimismo ... que nos lixa. Porquê? Ah bom, porque... uma dor de colhões, não te rias. Absolutamente. O pessimismo, se não sabes ficas a saber, sempre teve a ver com carências afectavas. Daí que ele seja incómodo por natureza. Incómodo para o próprio que, sabe Deus, tem de viver toda a vida com essa dor, esse nó, e incómodo para a Pátria que já mandou para o Camões todos os Velhos do Restelo que lhe andavam a dar azar. Isto - por um lado, aquele a que podemos chamar Da Saúde Nacional. Mas há o outro, o da superstição. Absolutamente. O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer. E se acontecer, percebes, também já não perde tudo, ganhou pelo menos a glória da razão. Uma superstição pela negativa ou por efeito contrário, dirá algum, mas muitas ... realmente nesse jogo a dois gumes que acaba o austero pessimismo. Que horas serão isto? (...)"

Cardoso Pires por Cardoso Pires,
entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 89-94


pindaro

LISBOA

"Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade a navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, até a brisa que corre me sabe a sal (...) "

José Cardoso Pires


pindaro

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Legenda

“Do latim medieval legenda, o que deve ser lido.
Representação de factos ou personagens ampliadas pela imaginação.
Todo o texto que acompanha uma imagem e lhe dá sentido.”

Dic. Le Robert




Brassaí conta que um ser muito jovem e belo por quem um grande nome das letras francesas se apaixonara lhe dera uma fotografia nas costas da qual tinha escrito estas palavras:

Look at my face; my name is
Might have been;
I am also called
No more, Too late, Farwell.


Na nudez do “Might have been” atravessam, ao mesmo tempo, a ausência e o excesso de sentido, levadas em dois sopros no mesmo vento.

Nesse canto elegíaco de desnudamento, perpassa, macio, o refrulho de Giulia Sissa: a alma é um corpo de mulher...

Naquela privação, voraz como um vinho que se entorna, só o tempo lambe o golpe, o tempo entrevisto por Yeats, pois com o tempo a sabedoria:

Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade.


Depois, fabricantes de simulacros, como animais marcaríamos em cada dia novo território no mapa da rosa-dos-ventos, debruado de sabores ásperos e avivado de azul.




Doutor Lívio

Nusquama (nenhures)

"Navegavam sem o mapa que faziam"
sophia de melo breyner




O deslumbramento e a nostalgia da errância vão discorrendo por entre as emboscadas das horas.

É voltar a soltar amarras, é voltar a peregrinar o sul dos encantos, que só o incessante rumor da distância nos redime.




Leonardo

Sem luxo






"Que pena me faz a mim, filho do campo, criado ao murmúrio das águas de rega e à sombra dos arvoredos, que esta gente de Lisboa passe as horas e dias de repouso acotovelando-se tristemente pelas ruas estreitas, e não tenha um grande parque, sem luxo, de relvados frescos e árvores copadas, onde brinque, rie, jogue, tome ar puro e verdadeiramente se divirta em contacto com a natureza."

A. Salazar



pindaro

segunda-feira, dezembro 05, 2005

La aurora del fruto

La lluvia tiene un vago secreto de ternura,
algo de soñolencia resignada y amable,
una música humilde se despierta con ella
que hace vibrar el alma dormida del paisaje.




frederico garcia lorca


pindaro

No breve espaço

O mundo é grande


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.



carlos drummond de andrade



pindaro

O navio em cima do mar

CANÇÃO


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles



pindaro

Au sein de ton image

L'homme et la mer



Homme libre, toujours tu chériras la mer!
La mer est ton miroir, tu contemples ton âme
Dans le déroulement infini de sa lame
Et ton esprit n'est pas un gouffre moins amer.

Tu te plais a plonger au sein de ton image;
Tu l'embrasses des yeux et des bras, et ton coeur
Se distrait quelquefois de sa propre rumeur
Au bruit de cette plainte indomptable et sauvage.

Vous êtes tous les deux ténébreux et discrets;
Homme, nul n'a sondé le fond de tes abîmes;
O mer, nul ne connaît tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets!

Et cependant voilà des siècles innombrables
Que vous vous combattez sans pitié ni remords,
Tellement vous aimez le carnage et la mort,
O lutteurs éternels, O frères implacables!



Charles Baudelaire


pindaro

Tem o bilhar, tem a tipóia, tem a batota, tem a mulherinha...

"- E olha, Teodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te sejam necessárias mais ceroulas... Encomenda, filho, encomenda, que graças a Nossa Senhora do Rosário tenho pos­ses, e quero que vás com decência e te apresentes bem lá na sepulturazinha de Deus!...

Encomendei; e, tendo comprado um Guia do Oriente e um capacete de cortiça, informei-me sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalém, com Benjamim Sarrosa & Cia., judeu sagaz, que ia todos os anos, de turbante, comprar bois a Marrocos.

Benjamim marcou-me, miudamente, num papel, o meu grandioso itinerário.

Embarcaria no Málaga, vapor da Casa Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, num mar sempre azul, à velha terra do Egito.

Aí um repouso sensual na festiva Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da Síria, aportaria a Jafa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo uma estrada macadamizada, ao chouto de uma égua doce, veria, ao fim de um dia e ao fim de uma noite, surgirem, negras entre colinas tristes, as muralhas de Jerusalém!

- Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um bocadinho de Espanha? Ó menino, olhe que eu quero refestelar-me.

- Refestela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipóia, tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se refestela!

No entanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se falava da minha santa empresa.

Uma manhã, li, escarlate de orgulho, no Jornal das Novidades, estas linhas honoríficas:

"Parte brevemente a visitar Jerusalém, e todos os sacros lugares em que padeceu por nóso Redentor, o nosso amigo Teodorico Raposo, sobrinho da Excelentíssima D. Patrocínio das Neves, opulenta proprietária, e modelo de virtudes cristãs. Boa viagem!"

A Titi, desvanecida, guardou o jornal no oratório, debaixo da peanha de São José;"





Eça de Queirós



pindaro

Tens inferno pior







Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórrido negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares,cós Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores
-E meu cioso pranto... oh Jove, oh nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.


Bocage


pindaro

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Com os adornos







Que polpuda que és
quando
ao bosque

arrimam
os tangos de verão


que riçam a penugem
e
rasam as marés
da fome e da sede

com os adornos
do sumo




solino

Dei mais a vida e a alma






Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só com vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.


Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e a alma por querê-los,
Donde já me não fica mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.



Luis Vaz de Camões

pindaro

Pensamiento belicoso

CAMPO DE BATALLA


Nace en las ingles un calor callado,
como un rumor de espuma silencioso.
Su dura mimbre el tulipán precioso
dobla sin agua, vivo y agotado.

Crece en la sangre un desasosegado,
urgente pensamiento belicoso.
La exhausta flor perdida en su reposo
rompe su sueño en la raíz mojado.

Salta la tierra y de su entraña pierde
savia, veneno y alameda verde.
Palpita, cruje, azota, empuja, estalla.

La vida hiende vida en plena vida.
Y aunque la muerte gane la partida,
todo es un campo alegre de batalla.



Rafael Alberti


pindaro

Y navego en cada resonancia



He aquí que el silencio fue integrado
por el total de la palabra humana,
y no hablar es morir entre los seres:
se hace lenguaje hasta la cabellera,
habla la boca sin mover los labios,
los ojos de repente son palabras...
...Yo tomo la palabra y la recorro
como si fuera sólo
forma humana,
me embelesan sus líneas
y navego
en cada resonancia del idioma...



Pablo Neruda



pindaro

É lutar contra o bonito

"(...) País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira , comigo. "
A. O´Neill




"Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito."

Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

(...)

Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido
que a regra é não haver regra,
a não ser a de cada um,
com a sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo..."


alexandre o´neill



pindaro