segunda-feira, outubro 31, 2005

O vestígio e a aura

"Return in peace to the ocean, my love
I, too, am part of that ocean, my love"
Walt Whitman




" O vestígio é a manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar o ser que o deixou.
A aura é a manifestação de uma lonjura, por mais próximo que possa estar aquilo que a evoca.
Com o vestígio apoderamo-nos da coisa, com a aura é ela que é senhora de nós."


walter benjamin


pindaro

Descompassada besta

"Nas polémicas camilianas de móbil religioso ou erudito o factor pitoresco do adversário prime sobre as razoadas razões que pudesse haver contra o próprio. E basta um trocadilho, como feito com os verbos deputar e delegar aplicados a certa atitude de um publicista brasileiro, para que Camilo conquiste abusivamente a sua galeria de leitores, muito mais empenhados em ver urna luta de galos do que em derimir a verdade entre dois contendores de boa fé. Por isso a imagem de "carvalho cerquinho" do cacete estadeado pelo escritor ficou como símbolo da sua acometividade polémica, e o grosso epíteto – "descompassada besta" – como a chave do êxito dos seus lances de dicacidade amarga."



Vitorino Nemésio
(in onesimo teotonio de almeida)


pindaro

Enfreá-los

"Tanas é um idiota piramidal.
(...)
Mas a tolice vangloriosa, mas o intono da estupidez, mas a necedade farfalhuda, mas o publicista de tamancos e arremangado à laia de carreteiro, isso nauseia, indigna e fede! Tanas...

Mas será ele Tanas este artigo do Português de 30 de Agosto?

Vamos à assinatura: – E. T. Das duas uma: É Tanas, ou É Tolo. Se é Tolo é Tanas, e se é Tanas é Tolo: logo, É TANAS."

Na sequência da polémica, Camilo chama-o "bandalho" e, a ele e aos camaradas de redacção, julga-os "três asneirões", aos quais

"(o) Nacional o mais que fará é enfreá-los, botar-lhes os cabeções, e esporeá-los de vez em quando para que a humanidade incauta lhes veja a solidez das ferraduras. "



Camilo Castelo Branco
sobre Joao Felix Rodrigues

(in Onesimo Teotónio de Almeida)


pindaro

sexta-feira, outubro 28, 2005

De beijos tão sem tento

Fogo preso



Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando
Essa luz repentina até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento, tão violento e brando.
Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando
E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento
A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento




vasco graça moura



pindaro

quarta-feira, outubro 26, 2005

Há quanto tempo?

"Ilustre paspalhão, pasmo dos orbes,
Nata da estupidez, álcool dos parvos,
De Campanhã o bardo te saúda!
Salvaste Roma, ó ganso!... se não grasnas
Piravam-se os tais paus (...)
(...)
A propósito, amigo, há quanto tempo
Conservas de escabeche a inteligência?"




Camilo Castelo Branco
(A abrir a "epístola" em verso ao Visconde de Atouguia)



pindaro

Outros sete

Sete anos de pastor Jacó servia



Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pertendia.


Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

Luis de Camões



pindaro


domingo, outubro 23, 2005

Um murmúrio imperceptível

"Um murmúrio imperceptível durante o dia, enche toda a penumbra nocturna"
Teixeira de Pascoaes




Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
E ter a cara serena.



fernando pessoa



pindaro

Portugal será

O Portugal futuro



O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do as falto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro



Ruy Belo



pindaro

sexta-feira, outubro 21, 2005

Namoram-se os Elementos

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista de que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.





luis de camões


pindaro

Imemorial


"Dos beijos ao banquete apaixonado em sonhos o amor levou-me um dia."

ascenso ferreira





Imemorial
o desejo
da pedra
despida

Impúdica
a carne
da intima
bebida

Devasso
o empenho
da boca
desenhada

Indecente
a rosa
cor-de-rosa
avermelhada




Solino

quarta-feira, outubro 19, 2005

Rosa e Limão






Lisboa



Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.




eugenio de andrade


pindaro

quinta-feira, outubro 13, 2005

Nas durezas dos amores

“Como o que ao deixar a ilha inaudita
se exalta com o sonho que se propôs
na pérola ardente que o imita.”

Carles Riba
(Salvatge cor)






Encontrava-se na situação daquele pescador de não sei que lenda árabe que, ao tentar afogar-se no meio do oceano, chega a um país submarino onde o fazem rei.

Tudo começa pela parte da ligação entre a noite e a sensualidade, e continua por aí fora nas histórias de correr fado até chegar à água, a da nossa memória, e a outra, a do mar.

A irmandade com o oceano é o sal que no-la dá.

A sua percentagem nele e em nós é a mesma, e que incessantemente assim tenha sido e que assim continuamente venha a ser é o salvo-conduto, o farol das fugidas dos ameaços de quem se governa como pode nas durezas dos amores.




Doutor Lívio

Tão tirana e desigual




Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Se alguma tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!





francisco roíz lobo





pindaro

À ostra bela

"Coração, olha o que queres
que mulheres são mulheres"

f. roíz lobo







És ruim, romã!

Onde,
no bosque de bagos rosados,
a nesga

que me leve
pela senda do teu sumo

à ostra bela,

primoroso,
e sem atravessadouros?





D. Júlio

Nostalgia

Conhecem o Diabo?

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal.

Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o corpo.

E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano.

Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce.

Tem talvez nostalgia do Céu!






eça de queirós
(o diabo)


pindaro

sábado, outubro 08, 2005

Desenhos de andar

“Há quatro coisas maiores que todas as outras: mulheres e cavalos, poder e guerra.”
Rudyard Kipling





Aqui está minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor e, de outro,
esquecimento.



cecília meireles



pindaro

Do aprendizado

"Deus é existirmos e isto não ser tudo"
bernardo soares
(livro do desassossego)






"A humildade é o princípio do aprendizado, e sobre ela, muita coisa tendo sido escrita, as três seguintes, de modo principal, dizem respeito ao estudante.

A primeira é que não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura.

A segunda é que não se envergonhe de aprender de ninguém.

A terceira é que, quando tiver alcançado a ciência, não despreze aos demais.

Muitos se enganaram por quererem parecer sábios antes do tempo, pois com isto envergonharam-se de aprender dos demais o que ignoravam.

Tu, porém meu filho, aprende de todos de boa vontade aquilo que desconheces.

Serás mais sábio do que todos, se quiseres aprender de todos.

Nenhuma ciência, portanto, tenhas como vil, porque toda ciência é boa. Nenhuma Escritura, ou pelo menos, nenhuma Lei desprezes, se estiver à disposição.

Se nada lucrares, também nada terás perdido.

Diz, de facto, o Apóstolo: “Omnia legentes, quae bona sunt tenentes”

O bom estudante deve ser humilde e manso, inteiramente alheio aos cuidados do mundo e às tentações dos prazeres, e solícito em aprender de boa vontade de todos.

Nunca presuma de sua ciência; não queira parecer douto, mas sê-lo; busque os ditos dos sábios, e procure ardentemente ter sempre os seus vultos diante dos olhos da mente, como um espelho."




hugo de são vitor




pindaro

Magnetismo

"A arte de regular as maneiras por meio de uma combinação feita entre a nossa organização e a nossa vontade é uma das mais importantes coisas que se devem conhecer.

Há homens que, sem plausivelmente sabermos porquê, alcançam tudo quanto querem nas pretensões do Estado, nas transacções comerciais, nas atenções das salas.

Emerson, o célebre escritor americano, observando que os indivíduos que mais frequentemente obtêm esses triunfos não são os mais inteligentes, nem os mais belos, nem os mais honrados, averigua com muita lógica que o sucesso das nossas aspirações na sociedade depende principalmente do nosso porte.

Por tal razão, Emerson define as maneiras - talento de dominar.

No modo como nós nos vestimos, como falamos, como olhamos, como nos movemos, há efectivamente uma espécie de indefinido magnetismo a cuja influência não pode furtar-se quem se lhe sujeita."




Ramalho Ortigão
As farpas- tomo VIII- Junho de 1871


pindaro

Polpuda que és






Que polpuda que és
quando
ao bosque

arrimam
os tangos de verão


que riçam a penugem
e
rasam as marés
das fomes e das sedes

com os adornos
do sumo




solino

Pela densidade folhuda do parreiral





A ramada suspensa em esteios de pedra formava o enfolhado docel do tanque. Pendiam já dourados os enormes cachos de ferral. Alguma folha escarlate, outra amarelecida pelo queimar do sol, realçavam, variegando as cores, a abóbada afestoada. Nos rebordos da bica rústica por onde a água derivava, grogolejando nas algas, verdejavam vegetações filamentosas pendentes como meadas de esmeraldas, e miniaturas de relvedos, onde os insectos se pousavam n'um ruflar deleitoso de asas, no regalo da frescura, oscilando as antenas.

Duas galinhas com as suas ninhadas esgaravatavam na leiva húmida, a cacarejarem a cada grânulo ou insecto que bicavam, e deixavam cair e retomavam de novo, com umas negaças, para ensinar os pintainhos que se disputavam a posse do cibato em corrimaças impetuosas azoratadas.

De vez em quando, à tona d'água, rente com o combro de cantaria afofado de musgos verdes, emergia a cabeça glauca de uma rã que pinchava para a alfombra, coaxava o seu diálogo interrompido com outra rã do beiral fronteiro, e ambas a um tempo, mergulhavam de pincho, quando Cacilda batia a roupa na pedra esconsa do lavadouro.

Estava o sol a pino; mas pela densidade folhuda do parreiral apenas coavam umas lucilações a laminarem tremulamente a água ondulosa e escumada de sabão.




camilo castelo branco
(cacilda)



pindaro

Máscara

"Escolher a própria máscara é o primeiro gesto volumtário do humano."
clarice lispector






Platão escrevia que víamos no rosto de quem amamos a imagem do deus que nos governa.

Convém acrescentar que também nele apercebemos os nossos demónios pessoais...





solino

sexta-feira, outubro 07, 2005

Cravação fechada

“A esmeralda é uma pedra frágil que se quebra com facilidade, como a fé”
Catarina de Médicis






A regra só pode ser esta:
os lapidários lapidarão e os ourives engastarão.

E elas, as de cabelo asa de corvo e olhos pretos, usem, de primazia, na cercadura dos brincos a prata branca.

Com vistas para o realce.

Ponham, por cima, camisa aberta e cor de canela, que entraves raianos não molham beijos,

sabendo que reais são os méis e adulações no estreito das embocaduras, maiormente da do fremente limo voraz.

E, por cima de tudo, a destapar as pernas quase todas, que a seda preta, ávida de regard, mostre a sua solidão furtiva entre a saia e a carne nua.

Marcando territórios, os lobos florescem.





Doutor Lívio

quinta-feira, outubro 06, 2005

Fogo fixo na cúpula









Em plena jornada de pensamento, com vista ao sufrágio, nada virá tão a pêlo como deitar mão de um plano geral de alumiamento e balizagem.

E, do mesmo passo, recordar que em 1589, alguns meses após a derrota da “invencível armada”, o corsário e almirante inglês Sir Francis Drake fez-se ao mar a partir de Plymouth rumo à Península Ibérica.

O que aquilo tem a ver com isto ver-se-á.

Em reflexão, não se perca de vista que a poesia corresponde à música, pois aquela assenta nos ritmos, esta nos sons, e ambas na harmonia. Assim vá de se dar sequiosamente a uma e a outra, como quem, de tão ávido, parece querer matar uma sede de séculos.
Ajuda muito, porque apazigua e, conciliados os génios, vê-se mais claro.

Um pouco como o vinho, segundo nos conta uma antiga cançoneta italiana bem envelhecida:
“Chi ha la rabbia al cuore
si metta al tavolino
con un bichier di vino
la rabbia passerá.”

Rolando a mareagem, começa a atingir-se a afinidade do isto e do aquilo:

É que ver mais claro, no fundo o que importa, ganha muito boa achega com
luz de porto fixa com clarões.
Mormente em estado de atmosfera brumosa.

Aqui reentra o corsário.

Surpreende Peniche, em Maio, numa manhã de sexta-feira.
Reza a história que o jovem Conde de Essex arriscou afogar-se na praia de Nossa Senhora da Consolação para ser o primeiro a tocar terra.
Dias depois desembarca Sir Francis em Cascais, após o que, para o tudo ou nada, vai-se à entrada do Tejo a duelo com D. Alonso de Bazán, que era irmão do primeiro Marquês de Santa Cruz.

A empresa, como se sabe, falhou com um fragor extraordinário.

Ao tornar desordenado à sua terra e às iras da rainha, o soberbo corsário levou, de volta, um passageiro que com ele fora de viagem: D. António Prior do Crato.


Com música, poesia e luzes de porto, fica boa a reflexão.
E nos copos, com o Sir Francis Drake, o Conde de Essex, o D. Alonso de Bazán e o D. António Prior do Crato, fica ainda melhor.





D. Julio

terça-feira, outubro 04, 2005

A beleza do rumor entranhado

“ O desprazer é já menos, porque toda a cousa que se faz, de que nos não praz, podemos dizer com verdade que nos despraz dela, ainda que seja tão ligeira que não sintamos.”
D. Duarte (Leal Conselheiro)





D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Almeida Garret e Pascoaes, entre outros antigos vultos, tinham a palavra saudade ( soidade para D. Dinis) como um exclusivo pátrio, um termo só da nossa terra, intraduzível.

Dizia mesmo o Visconde João Baptista que “... o sentimento por ele representado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja um vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa...”

Só mais à frente, século passado adentro, o dogma quase mágico foi removido.

De facto, outras nações têm para a saudade um termo só seu: o galego tem soledades ou soedades; o catalão, anyoransa ou anyoramento; o italiano, desio ou disio; o romeno doru ou dor; o sueco, saknad; o dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor.

O filólogo Manuel de Melo abriu o capote a este bicho, com luzimento, em Notas Lexicológicas.

Falando das canções melancólicas dos romenos, Cratiunesco volteava sobre doru:
“Ce mot semble venir du mot latin desiderium, dont il exprime tous les nuances – le regret d´un bien perdu, le chagrin que cause son absence, l´ésperance de le recouvrer, le désir d´un bonheur, que l´on ne connait point encore et l´ivresse que en accompagne la posséssion.”

E, em francês, dava-se ao doru do poeta Alecandri o sentido de “désir mêlé de regret”.

Vamos, ainda, ao Purgatorio, com Dante:

“Era giá l´ora che volge il disio
Ai naviganti, e intenerisci il cuore
Lo di che han ai dolci amici addio;

E che lo nuovo peregrin d´amore
Punge, se ode aquilla di lontano,
Che peja il giorno pianger che si more”

( “C´était déja l´heure qui réveille les regrets
des navigateurs et attendrit leur âmme”, etc.
-Fiorentino)

Saudade, essa palavra para uma “mimosa paixão da alma”
(D. Francisco Manuel de Melo), não é só nossa.
E é de folgar que assim seja.
O contrário seria uma desordenança
Das grandes.



Leonardo

segunda-feira, outubro 03, 2005

Duende

“Son mis amores reales”
La devise de D. Juan de Tassis y Peralta, Conde de Villamediana
(“Chevalier de l´arène qui affronttait à pied les taureaux simplement pour qu´étincelle la devise que le mena à mort”
– L. M. Dominguin)





O duende, como todo o bom bailador da esquivança, tem pergaminhos difíceis.
O seu campo é um território de labirintos e galerias, para o correr vai-se melhor com explorador. Espanhol e poeta: Federico Garcia Lorca.

O duende, Lorca vai abrindo, é um poder não uma atitude, é uma luta não um conceito, e nenhuma emoção é possível sem a sua mediação.

“Olé! Isto tem duende!”, bradou o bailarino cigano La Malana ao ouvir Brailowski tocar um fragmento de Bach. Agarrara o “é da coisa”, como Goethe quando, falando de Paganini, falava de “um poder misterioso que todos podem sentir e nenhuma filosofia pode explicar.”

O duende fantasia nas interioridades escondidas e, no dizer do explorador, encontra-se “durmiendo en las últimas habitationes de la sangre”.

Ama as fronteiras e as feridas, e aproxima-se dos lugares onde as formas se fundem num anseio superior às suas expressões visíveis. Ser misterioso, meio diabólico meio angélico – os dois ao mesmo tempo – costuma inspirar os que nele crêem.

A sua funda vocação, acrescentaria Henri Thoreau, é a de “sugar o tutano do dia.”

Encanto da região do fogo, demónio furioso e devorador, irmão dos ventos carregados de areia, o duende baila com particular ligeireza por dentro dos cantadores ciganos, dos toureiros e dos poetas.

É ver João Cabral de Mello Neto:



(...)
Mas eu vi Manuel Rodriguez
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo
mais mineral e desperto,

(...)
o que à tragédia deu número,
à vertigem geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodriguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida.

E como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor
sem poetizar seu poema.”




“Sueño de una sombra /o sombra de un sueño”, dizia José Bergamin, mas o duende, digo eu, tem um outro dom que é o da impermanência, a arte de dizer adeus com elegância.





Doutor Lívio