terça-feira, janeiro 31, 2006

Foste tu quem nos veio namorar



MAR! Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

MAR! Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
- Nem aumentar nem sufocar o pranto...

MAR! Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

MAR! Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

MAR! E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!



miguel torga



pindaro

Corto and Friends




"Corto Maltese (possibly
derived from the Venetian Courtyard of the Maltese) is a laconic sea captain adventuring through the early 20th century (1900-1920s). A rogue with a heart of gold, he is tolerant and sympathetic to the underdog.

Born in Valletta on July 10, 1887, he is a son of a British sailor from Cornwall and a gypsy witch from Gibraltar who carved his own life line on his palm, determining that his fate was his to choose. Although maintaining a neutral pose, Corto instinctively supports the disadvantaged and oppressed.

The character embodies the author's skepticism of national, ideological, and religious assertions. Corto befriends people from all walks of life, including murderous Russian Rasputin (no relation with the historical figure, apart a physical resemblance), British heir Tristan Bantam, Voodoo priestess Gold Mouth and Czech academic Jeremiah Steiner.
He also knows and meets various historical figures, including Jack London, Ernest Hemingway, Herman Hesse, Butch Cassidy, Russian White general Roman von Ungern-Sternberg and Enver Pasha of Turkey.
His acquaintances treat him with great respect, as when a telephone call to Josef Stalin frees him from arrest when he is threatened with execution on the border of Turkey and Armenia.

Corto's favourite reading is the
Utopia by Thomas More, but he never finished it.
He also read books by London, Stevenson, Melville, Conrad."
(from Wikipedia)






Pindaro

Véspera de água

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Havia ainda outro jardim o da minha vida
exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães de pé
é sempre a mesma inquietação

este delírio branco ou o rumor
da chuva sobre flancos e barcos
o inverno vai chegar
sobre a palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem

era o sopro distante das manhãs sobre o mar
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar


Eugénio de Andrade

pindaro

Como as inscrições nas penedias

Identidade




Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que ha' no sofrimento.


Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Da' beleza e sentido a cada grito.


Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.


Miguel Torga


pindaro

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Na cava da palavra







As coisas não se submetem
à nossa vestidura;
na máscara que somos
as coisas nos conjuram.

Por que não escutá-las,
tão sáfaras e puras,
como flores ou larvas,
estranhas criaturas?

Por que desprezá-las
no sopro que as transmuda
com os olhos de favas,
fechados na espessura?

Por que não escutá-las
na linguagem mais dura,
comprimidas as asas
na testa que as vincula?

Despimos a armadura
e a viseira diurna;
a linguagem resvala
onde as coisas se apuram.

Recônditas e escravas
na cava da palavra,
são fiandeiras escuras
ou áspides sequiosas.

As coisas não se submetem
à nossa vestidura.


Carlos Nejar


pindaro

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Ton miroir









L`homme et la mer

Homme libre, toujours tu chériras la mer!
La mer est ton miroir, tu contemples ton âme
Dans le déroulement infini de sa lame
Et ton esprit n'est pas un gouffre moins amer.

Tu te plais a plonger au sein de ton image;
Tu l'embrasses des yeux et des bras, et ton coeur
Se distrait quelquefois de sa propre rumeur
Au bruit de cette plainte indomptable et sauvage.

Vous êtes tous les deux ténébreux et discrets;
Homme, nul n'a sondé le fond de tes abîmes;
O mer, nul ne connaît tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets!

Et cependant voilà des siècles innombrables
Que vous vous combattez sans pitié ni remords,
Tellement vous aimez le carnage et la mort,
O lutteurs éternels, O frères implacables!


Charles Baudelaire



pindaro

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Receita de mulher

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso
que súbito tenha-se a
impressão de ver uma
garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só
encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas
que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso,
é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que
umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.


Vinicius de Moraes

pindaro

Sem razões



As sem razões do amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.



Carlos Drummond de Andrade


pindaro

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Tudo o que voa é ave



Ciganos

Tudo o que voa é ave.
Desta janela aberta
A pena que se eleva é mais suave
E a folha que plana é mais liberta.

Nos seus braços azuis o céu aquece
Todo o alado movimento.
É no chão que arrefece
O que não pode andar no firmamento.

Outro levante, pois, ciganos!
Outra tenda sem pátria mais além!
Desumanos
São os sonhos, também...


Miguel Torga


pindaro

Santo e Senha

Deixem
passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada

Deixem, que vai apenas
Beber água de sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão
Que vai ser uma estrela no chão.


Miguel Torga


pindaro

A fábula novelesca

"– Escolhi-te mulher – disse Cristóvão. – É ainda tua parenta por Meneses. Não é herdeira; mas o irmão morgado está héctico, e o segundogénito é aleijado e incapaz para o matrimónio. Virá ela portanto a herdar os vínculos. É preciso que a visites hoje comigo.

– Meu pai – respondeu António com respeitosa serenidade – pode V.ª S.ª dispor da minha vida; mas do meu coração já eu dispus. Ou hei-de casar com uma rapariga de baixa condição a quem prometi, ou não casarei nunca.

O velho pôs a mão convulsa nos copos do espadim, arquejou largo espaço, e disse:

– Duvido que você seja meu filho. Proíbo-lhe que se assine Queirós de Meneses. Adopte o apelido de algum dos meus lacaios.

António levantou o rosto e redarguiu:

– Não se ultraja assim a memória de minha mãe.

O velho nutava entre a cólera e a vergonha. Estendeu o braço, e apontou-lhe a porta, rugindo:

– Espere as minhas ordens no seu quarto.

Ao outro dia, um mandado da regência ao intendente-geral da Policia ordenava a prisão do cadete de cavalaria António de Queirós e Meneses no Limoeiro."



Camilo Castelo Branco



pindaro

terça-feira, janeiro 24, 2006

Tienes líneas de luna


DESNUDA

Desnuda eres tan simple como una de tus manos:
lisa, terrestre, mínima, redonda, transparente.
Tienes líneas de luna, caminos de manzana.
Desnuda eres delgada como el trigo desnudo.

Desnuda eres azul como la noche en Cuba:
tienes enredaderas y estrellas en el pelo.
Desnuda eres redonda y amarilla
como el verano en una iglesia de oro.

Desnuda eres pequeña como una de tus uñas:
curva, sutil, rosada hasta que nace el día
y te metes en el subterráneo del mundo

como en un largo túnel de trajes y trabajos:
tu claridad se apaga, se viste, se deshoja
y otra vez vuelve a ser una mano desnuda.

Pablo Neruda

pindaro

Los surcos del azar

“Para qué llamar caminos a los surcos del azar?”
Antonio Machado



Corto Maltese é um marinheiro que viaja por todo o mundo no início do século XX. Corto viaja pelo Pacífico Sul, passa por Veneza, pela América do Sul, pela Sibéria e por muitos outros locais. Por cada local por onde passa, encontra sempre alguém conhecido, participa numa nova aventura e conhece uma nova mulher, quase sempre misteriosa.
Em suas aventuras cheias de referências, várias vezes Corto cruzou com personagens históricos reais como o escritor Jack London, o fora-da-lei Butch Cassidy, o piloto alemão Barão Vermelho e muitos outros.
Para os brasileiros, é interessante lembrar que Tiro Certeiro não existiu, mas Corisco, sim (Corisco também foi personagem do filme de Glauber Rocha, "Deus e o Diabo na Terra do Sol").



(wikipedia)



pindaro

sábado, janeiro 21, 2006

O que importa é o partir

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…

(Só nos é concedida esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura
O que importa é o partir, não o
chegar.



Miguel Torga

pindaro

Guardada na claridade

Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
Ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu
Voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém.


natália correia

pindaro

quinta-feira, janeiro 19, 2006

There is a sea









There is a sea,
A far and distant sea

Beyond the farthest line,
Where all my ships that went astray
Where all my dreams of yesterday
Are mine




(in Contos Exemplares)


pindaro

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Bugatti verde


“Viajante do mar cavalgando ventos
deixando um rasto de
pássaros entre as nuvens”
Li Bai








Cheirava a cedro.

Com garbo e greta vagueava na ambivalência ou no Grand Hôtel de Monte-Carlo, sussurrando leves profunduras ao Great Gasby e à Dolores Del Rio, por entre bolhas de champagne e outras maciezas.

Desassossegando os que amava e pintava, era um tableau vivant com nome de pseudónimo, e uma baronesa de barão húngaro com vestígios de silêncio na lâmina.

D´Annunzio definiu-a como a mulher de ouro, a ela, a imprecisa como uma esmeralda, a ela, a de unhas vermelho-sangue, sumptuosamente ouro-arruivada.

Era um ser alto e esguio, mas com talhe, com sinuosidades consumadas nos quatro ventos que abriam as saias.

Diva dos roaring twenties e viajante do Normandie, deixou Nana de Herrera nua demais, e viu o conde Furstenberg Herdringen como um Mefistófeles saído da neblina da Berlim de Klaus Mann.

Para ela a transgressão era só um debrum, e, perversa como Ingres, era uma ávida predadora da sensualidade bidireccional, de veludo e carne nua.

Onde acabava o vestido e começava o corpo?

No altar dos seus deuses só um senhoreava – o estilo.

Baronesa Tamara de Lempicka-Kuffner.

La belle polonaise.




leonardo

sábado, janeiro 14, 2006

Frágoa que devora




Amor é um arder, que se não sente;
É ferida, que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.

É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia a mais cruel, e a mais impura;
É frágoa, que devora o fogo ardente.

É um triste penar entre lamentos,
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.

É suspiros lançar de quando, em quando;
É quem me causa eternos sentimentos:
É quem me mata, e vida me está dando.



Paulino Antonio Cabral, Abade de Jazente


pindaro

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Lua do lobo

"Il faro è la vita, il paradiso può attendere."


Por debaixo da lua cheia de 14 de Janeiro, a lua do lobo, de eles andarem à solta, os frios e os mistérios envolvem os caminhos dos traficantes.
Se os braseiros e as lâmpadas esquecidas alumiarem o desenho, bem mordido, da allure cavalheiresca pode ainda acontecer que a honra rija e austera sobreviva.
O cavername da urdidura, porém, não prenuncia ambiguidades animadoras.

Em qualquer caso, hoje, pelo menos para os lobos, é a véspera de uma grande noite e, como se sabe, é de véspera que, frementes as narinas, brota o deleite.


D. Júlio

I, too, am part











"Return in peace to the ocean, my love
I, too, am part of that ocean, my love"

Walt Whitman





pindaro

Procurando no inesperado (III)

(as camadas profundas do sentir)


"Ay flores! Ay flores de verde pino
Se sabedes novas do meu amigo
Ay Deus, e hu é?"

D. Deniz



O Conde de Sabugosa admite: nem podemos referir cada um dos lances desse enredado jogo de xadrez em que se disputavam os consórcios reais...

Tinha D. Sebastião quatro anos, destinaram-lhe os Estados Margarida de Valois.
Mas o manhoso Felipe, rei da Espanha, contrariou a escolha e antepôs Isabel da Áustria.
Mais tarde, porém, inúmeras vicissitudes passadas, aceitou afinal aquela ideia e, com a sua autoridade de tio, propôs-se casar Margarida com o rei de Portugal.

Só que o moço rei, parece que ajudado pelo jesuíta Gonçalves da Câmara, não esteve por tal ajuste.
Enredou-se, então, ainda mais com incidentes essa emaranhada teia fabricada pela laboriosa e taciturna aranha que, do fundo do Escurial, fazia e desfazia projectos de casamento, na mente de formar a Monarquia universal.

Pelo meio, era fama que o tal Câmara e seu irmão, além de outras coisas praticadas pelo rei, eram os causadores do malogro dos seus noivados.
Tanto assim, que um dia Martim Afonso de Sousa, fidalgo de muita autoridade, interpelou Luís Gonçalves da Câmara:
Que he isto que dizem, que ensinais El-Rey a que não olhe para as mulheres?
Senhor Martim Afonso, respondeu o jesuíta, por tão pouco considerado me tendes que cuidais de mim que não entendo que El-Rey ha de ser homem e ha de ter tais e tais partes; Eu não direi a El-Rey que seja amigo de mulheres, mas
se ele o fosse sem desordem, não lho estranharia; mas que quereis vós que façamos à natural inclinação que nele ha?

De facto, não era atreito o moço rei a apertos femeninos.
O capitão de Deus fazia arco com os braços para que as damas o não abraçassem por modo de carinhoso agrado.

Não deixa de ser curioso pensar que houve tantos esforços para casá-lo com Margarida de Valois, a licenciosa Margot, de libertina e romanesca memória.
Celebrada pelo cínico e amoral cortesão Senhor de Bourdeille, que falou da sedução da sua beleza, da perfeição das suas formas e ainda das mais reservadas linhas do seu corpo.

Comenta o Conde de Sabugosa: É irresistível a força do íman que atrai a fantasia para o campo das hipóteses.
Ligado à impetuosa e devastadora Valois é possível que D. Sebastião, afastando os rabugentos Câmaras, se suicidasse extenuado de amor. Teria sido um Alcácer Kibir menos glorioso, mas com menor ruína para a nação.

O moço rei ainda pediu mais tarde a seu tio Felipe II a mão de sua filha, mas neste subsistiam antigas suspeitas, que o haviam induzido a mandar a Lisboa o seu médico Almançón e Cristovao de Moura, com a missão de averiguarem disfarçadamente se D. Sebastião tinha qualidades físicas que o tornassem capaz de ter geração...

Belo como os arcanjos, se às mulheres impressionava, parece que também ele sentiu por vezes a perturbante influência da mulher, e se os sentidos o não dominavam, algumas inclinações amorosas puramente cerebrais, indicam que não era indiferente à graça feminina.

Para tudo ser estranho no destino do moço rei só uma das suas aventuras amorosas teve seguimento. E essa foi póstuma.



Píndaro

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Navegar naquele sorriso



O SORRISO

Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


Eugénio de Andrade



pindaro

Procurando no inesperado (II)

(Intrincado labirinto)


"Este sonho que sonhei
He verdade muito certa
que la da Ilha Encoberta
Ha de chegar este Rey"

G. A. Bandarra



Continuando, agora no terreno das propensões amoráveis, o Conde fala de um dos enigmas que mais despertou a atenção dos contemporâneos, e tem provocado a curiosidade dos investigadores: a capacidade de emoção amorosa do moço rei.

No seu tempo o problema agitou a Europa, e todos os que estudam a sua época e a personalidade do fantástico príncipe se quedaram indecisos acerca dos verdadeiros motivos que o levaram a desfazer projectos de casamento e a não se deixar captivar pelas seduções da mulher.

Sabugosa avalia as possibilidades:

Seria a castidade, aconselhada pelo velho Aleixo de Meneses e a abstenção imposta pela disciplina da Igreja que o levaram a aborrecer as bodas?

Seria a conservação da virgindade preconizada pelas regras de Cavalaria aos seus paladinos para melhor desempenharem as empresas sublimes?

Seria o horror à mulher, ente que, segundo muitos dos que ele admirava, foi sempre causa e motivo de afrouxamento de carácter e tibieza nas resoluções?

Seria a repulsão pela fêmea – aborrendo le done, mai non volle moglie – de que fala o historiador italiano?

Seria a nitidez exagerada da puberdade perante os mistérios da iniciação amorosa?

Seria o sentimento da fidelidade absoluta para com essa entidade abstracta de irresistível atracção – a glória militar – que o afastava das carícias femininas, como se vestisse a túnica tecida com as folhas de agnus castus, em que as matronas gregas se envolviam durante as festas de Céres?

Seria a incapacidade física a que se referia o Embaixador espanhol nas suas comunicações?

Seria um amor único, e cuidadosamente escondido, que o isolou da influência das Formosas que o rodeavam , e lhe afastou o sentido das noivas que lhe foram destinadas?


D. Sebastião, contemporiza o Conde, não é decerto um galanteador, como tantos dos seus antecessores, ou um incorrigível femeeiro como alguns deles.
Mas não é exacto que recusasse em absoluto o casamento, nem escapa a que a bisbilhotice lhe aponte algumas inclinações amorosas.

O capítulo dos projectos matrimoniais deste rei é complicado, arremata Sabugosa, que acrescenta o comentário do Padre Baião: Intrincado Labirinto





Píndaro

(o tema levará ainda ao procurando no inesperado III)

terça-feira, janeiro 10, 2006

Aura



" O vestígio é a manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar o ser que o deixou. A aura é a manifestação de uma lonjura, por mais próximo que possa estar aquilo que a evoca.Com o vestígio apoderamo-nos da coisa, com a aura é ela que é senhora de nós."

walter benjamin

pindaro

A própria máscara

"Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário do humano."
clarice lispector




Platão escrevia que víamos no rosto de quem amamos a imagem do deus que nos governa.

Convém acrescentar que também nele apercebemos os nossos demónios pessoais...





solino

"Se for pouco o vinho beba eu diante...


...que quem leva a primeira não fica sem ela."







"Aqui ofereço a V. Excelência uma conversação de amigos bem acostumados, umas noites de Inverno melhor gastadas que as que se passam em outros exercícios prejudiciais à vida e consciência; finalmente uma Corte que, como bonina do mato, a que falta o cheiro e a brandura das dos jardins, ainda que na aparência e cores a queira contrafazer, é contudo diferente. Se os ditos destes aldeãos cheirarem a Corte, acreditarão o título do livro, e, se souberem ao monte, também nele se confessa por Corte da Aldeia"


Francisco Roíz Lobo


pindaro

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Underneath all currents



I live by the ocean

and during the night

I dive into it

down to the bottom

underneath all currents

and drop my anchor

this is where i`m staying

this is my home

Bjork Gudmundsdottir

pindaro

Procurando no inesperado (I)

(numa manhã de cerração...)





“Vejo sem abrir os olhos
Tanto ao longe como ao perto
Quem mate d´águia os polhos,
Virá do mundo encoberto”

Gonçalo Anes Bandarra (Sonho 5º- Trova 5ª)




O Conde de Sabugosa aprimorou-se, entre uma mão cheia de literatura saborosa, num carnudo texto sobre um dos motes históricos mais prodigiosos que imaginar se possa:
El-Rei D. Sebastião.

Rei Cavaleiro para uns, nevropata para outros, Encoberto o apelidaram e Encoberto ficou, entre o nevoeiro simbólico com que a imaginação do povo o envolveu, e através do qual ansiava por que rompesse numa manhã de nevoeiro.

Se alguns académicos, servidos dos argumentos das ciências positivas, viram o rei como um monarca autoritário, com ímpetos enfermiços, um tresloucado guindado a herói, para o Conde o moço Rei consubstanciava em si as partículas anímicas de todo um povo, a quem o instinto da própria decadência impelia às empresas ousadas que lhe dessem a ilusão da antiga virilidade.

Fala-nos o Conde, em síntese refinada, do suicídio sublime de Alcácer Kibir, que representava o supremo arranco deste pequeno bando de aventureiros ocidentais.
Por isso, logo após a derrota e o desaparecimento, a figura do rei começa a renascer das próprias cinzas, numa aura de amoroso enlevo, que se transforma em sebastianismo.

E, sobre este, discorre, chamejando:

O sebastianismo não é só a aspiração messiânica de uma raça, ou a mística esperança num milagre próximo, não é apenas o sintoma mórbido que indica a alucinação do náufrago ou do moribundo;
Não é somente uma consequência da caquexia nacional, ou a aspiração nascida no pressentimento do próximo esfacelamento orgânico.

É tudo isso, mas é muito mais.
E como todos os sentimentos complexos, e como todas as ideias vagas, apresenta formas diversas segundo as épocas em que desabrocha.

É um arrepio pré-tumular, logo após a catástrofe.
É a nostalgia da pátria livre, durante os anos de escravidão.
É a esperança de um ressurgimento, de uma explosão de energias latentes, quando o organismo social começa a reaver a consciência da sua força.
É a expressão do desalento, quando sente esgotada a seiva vigorosa que lhe corria nas veias, durante a mocidade.
É o génio da raça portuguesa aventureira, generosa, irrequieta, procurando no inesperado e no sobrenatural a solução de problemas melindrosos.

E porque esse rei encarnou tantas das qualidades que caracterizam o português , e tantos dos defeitos que lhe desvairam a alma;
porque prefere as empresas heróicas combatendo inimigos longínquos, e as correrias atrás de uma quimera, às pacíficas ocupações da gestão dos negócios públicos;
porque é mais um chefe guerreiro que um pastor de povos;
porque caminha de olhos fechados para a ruína, levando consigo ao sorvedouro trágico a flor de Portugal, e na sua bagagem os petrechos com que se haviam de correr as canas, e alcanzias, e organizar os torneios festivos no dia da vitória...

Tem esse rei o heroísmo, a generosidade louca, o quid sobre humano que seduz .
Vem trazido numa onda de profecias e de lágrimas que tanto impressionam a alma céltica.

E a pluma que encima o elmo, arrancado ao jovem capitão de Deus pelos Alarves no mais aceso da refrega, continua tremulando intemeratamente, através dos tempos pela História adiante ....

Para mais acirrar a curiosidade dos pósteros há em volta dele um ambiente de mistério e na História a incerteza do seu destino. É desse interesse, desse mistério, dessa incerteza que nasceu a lenda, e se compôs a mística toada do sebastianismo, que se perpetuou em sucessivas gerações.

Ele ficou o Desejado, ele ficou o Encoberto!



Píndaro


(tendo em conta a densidade do tema do encoberto - nos aspectos "desejado" e "inclinação sexual de governantes" - seguir-se-á "procurando no inesperado" II)

Os vícios que se cobrem






"Ao estilo sublime contrapomos o estilo simples ou humilde.

Assim como as coisas grandes devem explicar-se magnificamente, assim o que é humilde deve-se dizer com estilo mui simples e modo de exprimir mui natural.

As expressões do estilo simples são tiradas dos modos mais comuns de falar a língua; e isto não se pode fazer sem perfeito conhecimento da dita língua.

Esta é, segundo os mestres da arte, a grande dificuldade do estilo simples.

Fácil coisa é a um homem de alguma literatura ornar o discurso com figuras; antes todos propendemos para isso, não só porque o discurso se encurta, mas porque talvez nos explicamos melhor com uma figura do que com muitas palavras.

Pelo contrário, para nos explicarmos naturalmente e sem figura, é necessário buscar o termo próprio, que exprima o que se quer, o qual nem sempre se acha, ou, ao menos, não sem dificuldade, e sempre se quer perfeita inteligência da língua para o executar.

Além disto, as figuras encantam o leitor e impedem-lhe penetrar é descobrir os vícios que se cobrem com tão ricos vestidos.

Não assim no estilo simples, o qual, como não faz pompa de ornamemtos, deixa considerar miudamente os pensamentos do escritor..."



luis antonio verney


pindaro

Já não paga o que deve

Quem vê, Senhora, claro e manifesto



Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só com vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.


Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e a alma por querê-los,
Donde já me não fica mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.


Luís de Camões


pindaro



sexta-feira, janeiro 06, 2006

Cheguei-me per`ela

Serranilha




A serra é alta, fria e nevosa;
vi venir serrana gentil, graciosa.

Vi venir serrana, gentil, graciosa;
cheguei-me per’ela com grã cortesia.

Cheguei-me per’ela de grã cortesia,
disse-lhe: senhora, quereis companhia?

Disse-lhe: senhora, quereis companhia?
Disse-me: escudeiro, segui vossa via.



Gil Vicente



pindaro

Eras la sed o el agua







Arde en tus ojos un misterio, virgen
esquiva y compañera.

No sé si es odio o es amor la lumbre
inagotable de tu aljaba negra.

Conmigo irás mientras proyecte sombra
mi cuerpo y quede a mi sandalia arena.

—Eres la sed o el agua en mi camino?
Dime, virgen esquiva y compañera.




António Machado

pindaro

quarta-feira, janeiro 04, 2006

A grande meu sabor






"Estranhais-me, que bem o vejo: que será? que não
será? que entremez é este? Foi grã dita que não apodais
já, mas não há-de falecer quem me arremede. Os
Portugueses sois assi feitos logo pola primeira, despois
dareis o sangue dos braços. Agora parece que me
estranham ainda mais. Parece-vos que não diz a fala cos
trajos? Esperáveis deles alguns triques troques. Ora me
ouvi, dir-vos-ei quem sou, donde venho, e ao que venho.
Quanto ao primeiro, sou üa pobre velha estrangeira, o
meu nome é Comédia; mas não cuideis que me haveis
por isso de comer, porque eu naci em Grécia, e lá me foi
posto o nome, por outras razoes que não pertencem a
esta vossa língua.
Ali vivi muitos anos a grande meu
sabor; passaram-me despois a Roma, pera onde então,
por mandado da fortuna, corria tudo. I cheguei a tanto
que me não faleceu um nada de ser Deusa; despois a
grandeza daquele Império que parecia pera nunca acabar,
todavia acabou... "



Francisco Sá de Miranda


pindaro

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Debruada de mar





Pátria



Soube a definição na minha infância.
Mas o tempo apagou
As linhas que no mapa da memória
A mestra palmatória
Desenhou

Hoje sei apenas gostar
Duma nesga de terra
Debruada de mar."



Miguel Torga


pindaro

À la Luna





"... En cuyo nome me parto
En dos partes, y no en una:
La del alma doi a ella,
La del corpo à la Fortuna
Y à la Luna
Porque la hizo tan bella."


Gil Vicente
(amadis de gaula)


pindaro

A serdes meu natural





Retrato, vós não sois meu;
Retrataram-vos mui mal;
Que a serdes meu natural
Fôreis mofino como eu.



Luis de Camões


pindaro

domingo, janeiro 01, 2006

Vou nada menos que a Santarém

"O Tejo separa a Europa da África. É mais do que uma ilusão causada pela luz."
Paul Hyland



"Em muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua (...)
Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica."


Almeida Garrett
Viagens na minha terra(1846)


pindaro