quarta-feira, novembro 30, 2005

Coisas efémeras que nunca acabam

"Quels doux supplices
Quelles délices,
De brusler dans les flammes
De la beauté des Dammes"

Antoine Boesset





"As mulheres não são pacientes com o amor. São pacientes com tudo e de tudo fazem hábitos. Do amor é que não. daí que muitas delas deixem de ser honestas e se entreguem a uma forma de criação que é principiar do nada coisas efémeras que nunca acabam. Chama-se a isto Quinta-Essência, a região do fogo e do amor.
(...)
Há, nesse círculo da quinta-essência, uma atracção tão arrebatada que ela serve de linguagem entre gente completamente estranha na raça e nos costumes. Um deleite, que não é dos sentidos mas superior nos seus efeitos,..."



Agustina Bessa Luís




pindaro

É este amor tão fino

Pede o desejo, Dama, que vos veja



Pede o desejo, Dama, que vos veja.
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.





Luis de Camões



pindaro

Cambiador

" Enfiamento é a linha fictícia que une dois ou três pontos situados na terra ou no mar... "




Já dizia o padre António Vieira ser “inclinação natural anelar ao negado.”

Retira-se de facto sabor acrescido se o alcançado é, antes, recusado.
Melhor ainda, tratando-se de coisa interdita.
E, delícia então, se a coisa é insólita.

O negado mais o proibido mais o insólito casam os cheiros e os sabores por inteiro.

A transgressão, a caça e a guerra amamentam-se disto.

O carácter do pecado navega no encanto da sensibilidade à angústia que fundamenta o interdito, porque transgredir não é negar a proibição, antes é rematá-la, perfazendo-a.

O objecto da dádiva é o descomedimento, soberbo e audaz, e o refluxo das proibições liberta o tumulto da exuberância e a desordem dos clamores e brados.

O paradoxo da tempestade. O rosto anuncia o que o vestido dissimula, o alcance luminoso.

Mas para adivinhar o enigma e ouvir a voz da inacessível solidão tem de se ter bem presente que “em ribeiro grande saltar de trás.”




D. Júlio

domingo, novembro 27, 2005

Primeiramente o sal



"Que es mi barco mi tesoro,
que es mi dios la libertad,
mi ley, la fuerza y el viento,
mi única patria, la mar."
don jose espronceda





”Primeiramente o sal (disse o Doutor Lívio), a quem um autor chamou conduto de todos os outros, é o que dá sabor e faz apetite ao desejo para todos eles.

- Muito se parece nisso com a fome (acudiu Solino).

-Assim é (disse o Doutor), porém tem de mais que os conserva e sustenta com sua força; por os quais atributos Homero e Platão chamaram ao sal divino; e assim como os mantimentos sem ele não obrigam a vontade assim por ele, como disse Plínio, significamos os afeitos do ânimo, chamando homem sem sal, prática sem ele, riso em sosso, e ainda fermosura sem sal, como escreveu Catulo de Quíncia que, pintando-a fermosa, branca e comprida, diz que em toda aquela figura não havia pedra de sal.

De maneira que, conforme a este sentido, o sal é uma graça ou composição da prática, do rosto ou do movimento do andar, que faz as pessoas aprazíveis.

E esta, segundo alguns, particularmente se declara no que obriga a siso e alegria, com um modo de murmuração leve.

Donde Séneca disse que o sal da conversação dos amigos não havia de ter dentes; e assim como os mantimentos que têm mais sal fazem maior sede a quem os come, assim a conversação, que tem mais dele, é mais apetitosa e desejada dos ouvintes e como, sem sal, todas as iguarias são sem sabores e desgostosas, assim a prática onde a sua graça falta é puro fastio.

Porém, quanto a mim, o que da tenção destes autores convém mais com o nosso modo de falar, sal quer dizer graça, que é o contrário da frieza e sensaboria, e dizemos do gracioso que é salgado, e do bem dito, que tem muito sal, e do que o não é, que não tem nenhum.

Sendo a causa geral porque lhes parecia aos antigos que se apartava e perdia a amizade, entornando-se o sal que na mesa fazia a figura dela.

E, à semelhança, tinham por boa sorte derramar-se o vinho, que como era símbolo de alegria e contentamento, desejavam que entre todos se espalhasse."


francisco roíz lobo


píndaro

Zona de contacto

“Senhor de San Patrizio – disse Mazarino aproximando um prato de lavagantes vivos que pareciam cozidos de um de lavagantes cozidos que pareciam vivos…”
Umberto Eco





Servem-se por agora não a aboborinha com alho e hortelã e os espetinhos de moela mas, à guisa de petisco d´alma, sabores espirituais entremeados segundo a sabida regra de Iriarte, que, aos epigramas, queria-os como abelhas:

“A la abeja semejante
para que cause placer,
el epigrama há de ser
pequeno, dulce e punzante.”

Pensamentos de talher, servidos sem guarnição pelos vateis maiores da santa terrinha.
A esmo, os relances de Camilo, Eça e Fialho:

“Consta que ele foi typographo em Coimbra para pagar os estudos.
Não havia de gastar muito se pagou o que sabe”

“…esses apenas produzem vegetalidades de folhagem amarellada, e alguns tortulhos bravos de espécie venenosa, rajados pela peçonha das velhas inépcias.”

“Trajava com elegância, vestia luva gema de ovo todos os dias, e aos domingos alugava cavalo.”

“Naquele tempo até as mulheres de espírito ruim me pareciam boas.”

“Diz adeus às tuas cabrinhas que eu volto já, filha…”

“Tinha a dose de velhacaria que a natureza concede a cada tolo maior de marca.”


CCBranco


“Tinha muita lição de livro mau donde sacava virtuosas parvoiçadas, mas habitava nele um gosto depravado pelo fadinho e um justo amor pelo bacalhau de cebolada.”

“Nesse momento estalavam foguetes ao longe, Lembrei-me que era domingo, dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flamejou, atraindo-me deliciosamente: - era a tourada vista de um camarote; depois um jantar com champagne; à noite, a orgia, como uma iniciação!
Corri à mesa. Atulhei as algibeiras de letras sobre Londres. Descia rua com um furor de abutre fendendo o ar contra a presa.
Uma caleche passava, vazia. Detive-a, berrei:
- Aos touros! “

EdQ


“Duas horas de sala de armas, alguns minutos de cabeleireiro e de clube, um bom alfaiate, uma ponta de desdém, e certo ar fatigado de quem esperdiça a vida sem lhe saborear dos proveitos, bastarão para dar o elegante.”

“Gosto do Parlamento como gosto dos toiros, para me estontear um instante na mancha ondeante das cabeças, nos borborinhos d´entrada, e de sahida, e finalmente, no investir do primeiro bicho.”

“…só aguardam, para bem servir o Estado, que o Estado lhes sirva a eles coito onde amozendem a preguiça gososa que os derranca.”

“Homem, isso não é música, é um boi que saltou a trincheira do sol!
Ora queira embolar-se, amigo Pratas, e fazer o favor de seguir o que lá está.”


FdA


E, depois, mesmo a esmo, as citações, disse Benjamim, são como ladrões de estradas, que fazem um ataque armado e aliviam um ocioso das suas convicções.



Doutor Lívio

quarta-feira, novembro 23, 2005

Entre todas as terras





"Santarém, Santarém! Levanta a tua cabeça coroada de torres e de mosteiros, de palácios e de templos! Mira-te no Tejo, princesa das nossas vilas e verás como eras bela e grande, rica e poderosa entre todas as terras portuguesas."


Almeida Garret


pindaro

...Um golpe de asa

Quase


Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...


Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!


De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...


Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...


Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...


Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...


Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...



mario de sá-carneiro



pindaro

segunda-feira, novembro 21, 2005

Foste tu quem nos veio namorar




MAR! Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

MAR! Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
- Nem aumentar nem sufocar o pranto...

MAR! Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

MAR! Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

MAR! E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!




miguel torga



pindaro

Em cada coisa






Para ser grande, sê inteiro; nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.





Ricardo Reis




pindaro

quinta-feira, novembro 17, 2005

Como os sentimentos esdrúxulos







Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


Álvaro de Campos


pindaro

Esse comboio de corda




Autopsicografia



"O poeta mente a verdade"
(Bertus Afjes)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.



fernando pessoa



pindaro

Não se sabe revelar







O AMOR, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...


fernando pessoa


pindaro

sexta-feira, novembro 11, 2005

Deixa-me acender

Gostava


Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafisica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...


Álvaro de Campos



pindaro

Entre vento e navalha

Escolha



Entre vento e navalha escolho o vento

entre verde e vermelho aquele azul

que até na morte servirá de espelho

ao vento que por dentro me deslumbra

Entre ventre e cipreste escolho o Sol

Entre as mãos que se dão a que se oculta

Entre o que nunca soube o que já sobra

Entre a relva um milímetro de bruma.




david mourão-ferreira



pindaro

De zero diante do infinito

"Un libro, como un viaje, se comienza con inquietud y se termina con melancolía"
José de Vasconcelos





Alentejo

"Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho, e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta, e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total ..."

Miguel Torga



pindaro

Que ambiguidade vens explorar?






GATO

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,

quem somos nós, teus donos ou teus servos?


Alexandre O'Neill


pindaro

terça-feira, novembro 08, 2005

Guiadas por sinais






A largada


Foram então as ânsias e os pinhais
Transformados em frágeis caravelas
Que partiam guiadas por sinais
Duma agulha inquieta como elas...

Foram então abraços repetidos
À Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
Às palavras cansadas
Que se ouviam no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
Cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.



Miguel Torga



pindaro

Iates pelo mar fora

O lord


Lord que eu fui de Escócias doutra vida
Hoje arrasta por esta a sua decadência,
Sem brilho e equipagens.
Milord reduzido a viver de imagens,
Pára às montras de jóias de opulência
Num desejo brumoso - em dúvida iludida...
(- Por isso a minha raiva mal contida,
- Por isso a minha eterna impaciência.)

Olha as Praças, rodeia-as...
Quem sabe se ele outrora
Teve Praças, como esta, e palácios e colunas -
Longas terras, quintas cheias,
Iates pelo mar fora,
Montanhas e lagos, florestas e dunas...

(- Por isso a sensação em mim fincada há tanto
Dum grande património algures haver perdido;
Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido -
E a Cor na minha Obra o que ficou do encanto...)



Mário de Sá Carneiro



pindaro

E os outros que hão-de vir

Reflorir, sempre


Não é já de Natal esta poesia.
E, se a teus pés deponho algo que encerra
e não algo que cria,
é porque em ti confio: como a terra,
por sobre ti os anos passarão,
a mesma serás sempre, e o coração,
como esse interior da terra nunca visto,
a primavera eterna de que existo,
o reflorir de sempre, o dia a dia,
o novo tempo e os outros que hão-de vir.



Jorge de Sena


pindaro

Na sua mão direita

Na mão de Deus


À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O. M.


Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!




Antero de Quental


pindaro

Ou uma noite qualquer

A meu favor


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de nós todos




Alexandre O'Neill



pindaro

Cheguei-me per´ela

Serranilha


A serra é alta, fria e nevosa;
vi venir serrana gentil, graciosa.

Vi venir serrana, gentil, graciosa;
cheguei-me per’ela com grã cortesia.

Cheguei-me per’ela de grã cortesia,
disse-lhe: senhora, quereis companhia?

Disse-lhe: senhora, quereis companhia?
Disse-me: escudeiro, segui vossa via.



Gil Vicente



pindaro

É tanta a graça que tem

Cantiga


Mote

Antes que o Sol se levante,
Vai Vilante a ver o gado,
Mas não vê Sol levantado
Quem vê primeiro a Vilante.


Voltas

É tanta a graça que tem
Com uma touca mal envolta,
Manga de camisa solta,
Faixa pregada ao desdém,
Que se o Sol a vir diante,
Quando vai mungir o gado,
Ficará como enleado
Ante os olhos de Vilante.

Descalça às vezes se atreve
Ir em mangas de camisa,
Se entre as ervas neve pisa
Não se julga qual é neve;
Duvida o que está diante
Quando a vê mungir o gado,
Se é tudo leite amassado,
Se tudo as mãos de Vilante.

Se acaso o braço levanta,
Porque a beatilha encolhe,
De qualquer pastor que a olhe
Leva a alma na garganta;
E inda que o Sol se alevante
A dar graça e luz ao prado,
Já Vilante lha tem dado,
Que o Sol tomou de Vilante.



Francisco Roíz Lobo



pindaro

sábado, novembro 05, 2005

Ruminava em coisas e loisas


" O licenciado era homem corpulento e bem nutrido. Visivelmente enfadado com a capilota, sobe e desce, brenha após brenha, avançou devagar e soprando para a estrada que levava de Romarigães a Agualonga.
Como é próprio do animal que Aristóteles chamava político, isto é, que vai sempre tratando de si, ruminava em coisas e loisas.
Ora lhe vinha à cabeça o javali que se escapara na fresca da ribeira, e dizia então com os seus botões: Deixa, há mais marés do que marinheiros. Daqui a dias estou cá botado e vais ver o bonito. Mas é preciso cercar a mata e cortar-te a retirada pelo lado da serra. Tu voltas, oh se voltas! Na serra daArga não tem bolotas como aqui. a bolota é que te há-de deitar a perder!
E logo a imaginação lhe pulava a outro quadrante: Que rica fazenda se fazia destes chavascais! Fazenda de leite e mel, como entendiam os antigos. Fazenda, fazendo-a. Era questão de murar e depois virar a leiva."


aquilino ribeiro



pindaro

quarta-feira, novembro 02, 2005

Tango do covil

Ai, quem me dera ser cantor
Quem dera ser tenor
Quem sabe ter a voz
Igual aos rouxinóis
Igual ao trovador
Que canta os arrebóis
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Deixa eu cantar tua beleza
Tu és a mais linda princesa
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser doutor
Formado em Salvador
Ter um diploma, anel
E voz de bacharel
Fazer em teu louvor
Discursos a granel
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Tu és a dama mais formosa
E, ouso dizer, a mais gostosa
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser garçom
Ter um sapato bom
Quem sabe até talvez
Ser um garçom francês
Falar de champinhon
Falar de molho inglês
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
És tão graciosa e tão miúda
Tu és a dama mais tesuda
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser Gardel
Tenor e bacharel
Francês e rouxinol
Doutor em champinhon
Garçom em Salvador
E locutor de futebol
Pra te dizer febril
Bem-vinda
Tua beleza é quase um crime
Tu és a bunda mais sublime
Aqui deste covil



chico buarque de holanda



pindaro

terça-feira, novembro 01, 2005

Une carte marine




Gentilhomme de fortune, Corto Maltese ne vas pas chercher l´aventure; elle vient à lui tandis qu´il déambule pour tromper un ennui empreint de nostalgie.

il sait que

"Une carte marine est bien plus qu´un instrument indispinsable pour aller d´un point à un autre; c´est une gravure, une page d´histoire, parfois un roman d´aventures."
Jacques Dupuet, Marin

et que

"... attira la femme contre lui, et telle qu´elle était, assise, le tee-shirt retroussé sur les hanches, le goût de l´orange sur la bouche, il chercha le chemin d´Ithaque sur l´autre rivage de cette mer ancienne et grise comme la mémoire."
Arturo Perez-Rever te, La cimitiére des bateaux sans nom



À marinheira que na paixão pelo mar navega o atlântico azul



Solino

Em dia com a pátria e o seu partido






"A sua personalidade de cronista meticulosamente fidedigno, em dia com a pátria e o seu partido, ressaltava do esmero com que arredondava a pança garrafal das letras e lhes projectava as hastes para o zénite."




aquilino ribeiro



pindaro