domingo, abril 30, 2006
São terras sem ter logar
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos falla,
Mas que, se escutarmos, calla,
Por ter havido escutar.
E só se, meio adormecido,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ella nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter logar
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos dispertando,
Calla a voz, e ha só o mar.
Fernando Pessoa
pindaro
sábado, abril 29, 2006
Nem chegaste a partir
De manhã, que medo que me achasses feia,
acordei tremendo deitada na areia.
Mas logo os teus olhos disseram que não!
E o sol penetrou no meu coração.
Vi depois numa rocha uma cruz
e o teu barco negro dançava na luz...
Vi teu braço acenando entre as velas já soltas...
Dizem as velhas da praia que não voltas.
São loucas... são loucas!
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.
No vento que lança areia nos vidros,
na água que canta no fogo mortiço,
no calor do leito dos bancos vazios,
dentro do meu peito estás sempre comigo.
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.
David Mourão Ferreira
pindaro
sexta-feira, abril 28, 2006
Todas as coisas
Em mim te almas
quinta-feira, abril 27, 2006
Palavras nuas
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
alexandre o´neill
píndaro
quarta-feira, abril 26, 2006
Anelar ao negado
" Enfiamento é a linha fictícia que une dois ou três pontos situados na terra ou no mar... "
Já dizia o padre António Vieira ser “inclinação natural anelar ao negado.”
Retira-se de facto sabor acrescido se o alcançado é, antes, recusado.
Melhor ainda, tratando-se de coisa interdita.
E, delícia então, se a coisa é insólita.
O negado mais o proibido mais o insólito casam os cheiros e os sabores por inteiro.
A transgressão, a caça e a guerra amamentam-se disto.
O carácter do pecado navega no encanto da sensibilidade à angústia que fundamenta o interdito, porque transgredir não é negar a proibição, antes é rematá-la, perfazendo-a.
O objecto da dádiva é o descomedimento, soberbo e audaz, e o refluxo das proibições liberta o tumulto da exuberância e a desordem dos clamores e brados.
O paradoxo da tempestade. O rosto anuncia o que o vestido dissimula, o alcance luminoso.
Mas para adivinhar o enigma e ouvir a voz da inacessível solidão tem de se ter bem presente que “em ribeiro grande saltar de trás.”
D. Júlio
No bosque de bagos rosados
Ait Ben Haddou
“O mundo é a cores, mas a preto e branco é mais realista”
Wim Wenders
lawrence da arábia+chá no deserto= paciente inglês
ou
zabriskie point+ paciente inglês= chá no deserto
ou
áfrica minha- zabriskie point+lawrence da arábia= paciente inglês+chá no deserto
ou
chá no deserto+áfrica minha+zabriskie point=paciente inglês+lawrence da arábia
ou
paciente inglês-lawrence da arábia+zabriskie point=chá no deserto+áfrica minha?
solino
Wim Wenders
lawrence da arábia+chá no deserto= paciente inglês
ou
zabriskie point+ paciente inglês= chá no deserto
ou
áfrica minha- zabriskie point+lawrence da arábia= paciente inglês+chá no deserto
ou
chá no deserto+áfrica minha+zabriskie point=paciente inglês+lawrence da arábia
ou
paciente inglês-lawrence da arábia+zabriskie point=chá no deserto+áfrica minha?
solino
Louvor da língua aparazível
“...e, levantando-se ele, se despediram todos com muita cortesia, deixando ao senhor da casa magoado de se acabar tão depressa a conversação; que quem sabe estimar a que é tão boa, tem sentimento das horas que dela perde.”
F.R.Lobo
“
(...)
- Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) pelas cousas da nossa Pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e da escritura.
Para falar é engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com um certo movimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias.
A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência de gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala.
Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade.
E se à língua Hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem os seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.
(...)
“
Francisco Roíz Lobo
"inCorte na Aldeia"
pindaro
F.R.Lobo
“
(...)
- Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) pelas cousas da nossa Pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e da escritura.
Para falar é engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com um certo movimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias.
A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência de gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala.
Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade.
E se à língua Hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem os seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.
(...)
“
Francisco Roíz Lobo
"inCorte na Aldeia"
pindaro
segunda-feira, abril 24, 2006
De beijos tão sem tento
Fogo preso
Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando
Essa luz repentina até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento, tão violento e brando.
Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando
E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento
A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento
vasco graça moura
pindaro
domingo, abril 23, 2006
Uma mimosa paixão da alma
“ O desprazer é já menos, porque toda a cousa que se faz, de que nos não praz, podemos dizer com verdade que nos despraz dela, ainda que seja tão ligeira que não sintamos.”
D. Duarte (Leal Conselheiro)
D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Almeida Garret e Pascoaes, entre outros vultos antigos, tinham a palavra saudade ( soidade para D. Dinis) como um exclusivo pátrio, um termo só da nossa terra, intraduzível.
Dizia mesmo o Visconde João Baptista que “... o sentimento por ele representado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja um vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa...”
Só mais à frente, século passado adentro, tal ideia, quase mágica, foi removida.
De facto, outras nações têm para a saudade um termo só seu: o galego tem soledades ou soedades; o catalão, anyoransa ou anyoramento; o italiano, desio ou disio; o romeno doru ou dor; o sueco, saknad; o dinamarquês, savn; o islandês, saknaor, e o alemão sehnsucht.
O filólogo Manuel de Melo abriu o capote a este bicho, com luzimento, em Notas Lexicológicas.
Falando das canções melancólicas dos romenos, Cratiunesco volteava sobre doru:
“Ce mot semble venir du mot latin desiderium, dont il exprime tous les nuances – le regret d´un bien perdu, le chagrin que cause son absence, l´ésperance de le recouvrer, le désir d´un bonheur, que l´on ne connait point encore et l´ivresse que en accompagne la posséssion.”
E, em francês, dava-se ao doru do poeta Alecandri o sentido de “désir mêlé de regret”.
Vamos, ainda, ao Purgatorio, com Dante:
“Era giá l´ora che volge il disio
Ai naviganti, e intenerisci il cuore
Lo di che han ai dolci amici addio;
E che lo nuovo peregrin d´amore
Punge, se ode aquilla di lontano,
Che peja il giorno pianger che si more”
( “C´était déja l´heure qui réveille les regrets
des navigateurs et attendrit leur âmme”, etc.
-Fiorentino)
Saudade, essa palavra para uma “mimosa paixão da alma” (D. Francisco Manuel de Melo), não é só nossa.
E é de folgar que seja assim.
O contrário seria uma desordenança.
Das grandes.
Leonardo
D. Duarte (Leal Conselheiro)
D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Almeida Garret e Pascoaes, entre outros vultos antigos, tinham a palavra saudade ( soidade para D. Dinis) como um exclusivo pátrio, um termo só da nossa terra, intraduzível.
Dizia mesmo o Visconde João Baptista que “... o sentimento por ele representado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja um vocábulo especial para o designar, não sei de nenhuma outra linguagem senão da portuguesa...”
Só mais à frente, século passado adentro, tal ideia, quase mágica, foi removida.
De facto, outras nações têm para a saudade um termo só seu: o galego tem soledades ou soedades; o catalão, anyoransa ou anyoramento; o italiano, desio ou disio; o romeno doru ou dor; o sueco, saknad; o dinamarquês, savn; o islandês, saknaor, e o alemão sehnsucht.
O filólogo Manuel de Melo abriu o capote a este bicho, com luzimento, em Notas Lexicológicas.
Falando das canções melancólicas dos romenos, Cratiunesco volteava sobre doru:
“Ce mot semble venir du mot latin desiderium, dont il exprime tous les nuances – le regret d´un bien perdu, le chagrin que cause son absence, l´ésperance de le recouvrer, le désir d´un bonheur, que l´on ne connait point encore et l´ivresse que en accompagne la posséssion.”
E, em francês, dava-se ao doru do poeta Alecandri o sentido de “désir mêlé de regret”.
Vamos, ainda, ao Purgatorio, com Dante:
“Era giá l´ora che volge il disio
Ai naviganti, e intenerisci il cuore
Lo di che han ai dolci amici addio;
E che lo nuovo peregrin d´amore
Punge, se ode aquilla di lontano,
Che peja il giorno pianger che si more”
( “C´était déja l´heure qui réveille les regrets
des navigateurs et attendrit leur âmme”, etc.
-Fiorentino)
Saudade, essa palavra para uma “mimosa paixão da alma” (D. Francisco Manuel de Melo), não é só nossa.
E é de folgar que seja assim.
O contrário seria uma desordenança.
Das grandes.
Leonardo
sexta-feira, abril 21, 2006
Eras la sed o el agua ?
Um ar de chalaça
Quando ela passa, franzina e cheia de graça,
Há sempre um ar de chalaça, no seu olhar feiticeiro.
Lá vai catita, cada dia mais bonita,
E o seu vestido, de chita, tem sempre um ar domingueiro.
Passa ligeira, alegre e namoradeira,
E a sorrir, p'rá rua inteira, vai semeando ilusões.
Quando ela passa, vai vender limões à praça,
E até lhe chamam, por graça, a Rosinha dos limões.
Quando ela passa, junto da minha janela,
Meus olhos vão atrás dela até ver, da rua, o fim.
Com ar gaiato, ela caminha apressada,
Rindo por tudo e por nada, e às vezes sorri p'ra mim…
Quando ela passa, apregoando os limões,
A sós, com os meus botões, no vão da minha janela
Fico pensando, que qualquer dia, por graça,
Vou comprar limões à praça e depois, caso com ela!
Artur Ribeiro
pindaro
Há sempre um ar de chalaça, no seu olhar feiticeiro.
Lá vai catita, cada dia mais bonita,
E o seu vestido, de chita, tem sempre um ar domingueiro.
Passa ligeira, alegre e namoradeira,
E a sorrir, p'rá rua inteira, vai semeando ilusões.
Quando ela passa, vai vender limões à praça,
E até lhe chamam, por graça, a Rosinha dos limões.
Quando ela passa, junto da minha janela,
Meus olhos vão atrás dela até ver, da rua, o fim.
Com ar gaiato, ela caminha apressada,
Rindo por tudo e por nada, e às vezes sorri p'ra mim…
Quando ela passa, apregoando os limões,
A sós, com os meus botões, no vão da minha janela
Fico pensando, que qualquer dia, por graça,
Vou comprar limões à praça e depois, caso com ela!
Artur Ribeiro
pindaro
Ansiada Ilha
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha
Fernando Pessoa
pindaro
Como se o mar nada fosse
Onda que, enrolada, tornas,
Pequena, ao mar que te trouxe
E ao recuar te transtornas
Como se o mar nada fosse,
Porque é que levas contigo
Só a tua cessação,
E, ao voltar ao mar antigo,
Não levas meu coração?
Há tanto tempo que o tenho
Que me pesa de o sentir.
Leva-o no som sem tamanho
Com que te oiço fugir!
Fernando Pessoa
pindaro
quinta-feira, abril 20, 2006
É este amor tão fino
Pede o desejo, Dama, que vos veja.
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,
Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
Luis de Camões
pindaro
quarta-feira, abril 19, 2006
Underneath all currents
There is a sea
There is a sea,
A far and distant sea
Beyond the farthest line,
Where all my ships that went astray
Where all my dreams of yesterday
Are mine
(in Contos Exemplares)
pindaro
Sem razões
As sem razões do amor
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade
pindaro
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade
pindaro
Sabe a lua-de-água
terça-feira, abril 18, 2006
Porque o feno amadurece
Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
teu sorriso puro,
a tua graça animal.
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
ao vê-los nus e suados.
Eugenio de Andrade
pindaro
segunda-feira, abril 17, 2006
Panorâmicas e vistas gerais
"Passo adiante. Agora estou virado a sul em formato postal e tu, Lisboa, com o rio em fundo num azul de entontecer. O tejo visto do mastro real, poderia dizer-se.
Do alto vos falo, onde
Acrescento azul de muitas cores
Ao outro azul que os vossos olhos vêem,
seria o aparte de Pedro Tamen se aqui estivesse. E eu faria que sim, mais que convicto, porque em poucos lugares como este de tantas cores cada cor é feita.
(...)
Nós, tanto quanto me apercebo, estamos os dois em mais ou menos: tu, cidade desfocada pela luz mundana dos videoturistas que te vieram espreitar de miradouro, eu um pouco à margem porque, para mim, panorâmicas e vistas gerais são quase sempre frases feitas ou cenários de catálogo."
José Cardoso Pires
pindaro
sábado, abril 15, 2006
De indecisos amores
Noite. Fundura. A treva
E mais doce talvez...
E uma ânsia de nudez
Sacode os filhos de Eva.
Não a nudez apenas
Dos corpos sofredores
Mas a das almas plenas
De indecisos amores.
A voz do sangue grita
E a das almas responde!
Labareda infinita
Que nas sombras se esconde.
Mas quase sem ruído,
Na carne ao abandono
O hálito do sono
Desce como um vestido...
Pedro Homem de Melo
pindaro
Deita o lanço com cautela
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!
Almeida Garrett
pindaro
Que deus te deu a repentina unha ?
Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?
Alexandre O'Neill
pindaro
Beatilha soqueixada
Descalça vai para a fonte,
Leonor pela verdura;
Vai formosa, e não segura.
A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada
Pisa as flores na verdura:
Vai formosa, e não segura.
Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com uma sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai formosa, e não segura.
As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.
Não na ver o Sol lhe val
Por não ter novo inimigo,
Mas ela corre perigo
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal
Se vai ver na fonte pura:
Vai formosa, e não segura.
Francisco Rodrigues Lobo
pindaro
Em mim como no mar
Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...
Vinicius de Moraes
pindaro
sexta-feira, abril 14, 2006
Depois de muito mar
"E il naufragar m'è dolce in questo mare".
Leopardi
Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.
És a princípio doce plasma submarino
Flutuando ao sabor de súbitas correntes
Frias e quentes, substância estranha e íntima
De teor irreal e tato transparente.
Depois teu seio é a infância, duna mansa
Cheia de alísios, marco espectral do istmo
Onde, a nudez vestida só de lua branca
Eu ia mergulhar minha face já triste.
Nele soterro a mão como a cravei criança
Noutro seio de que me lembro, também pleno...
Mas não sei... o ímpeto deste é doido e espanta
O outro me dava vida, este me mete medo.
Toco uma a uma as doces glândulas em feixes
Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos
Na massa cintilante e convulsa de peixes
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas.
E ponho-me a cismar... - mulher, como te expandes!
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância!
De coordenadas tais e horizontes tão grandes
Que assim imersa em amor és uma Atlântida!
Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia
Que faz meu corpo vil querer teu corpo moço.
E te amo, e te amo, e te amo, e te amo
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea
Como o mar ao penhasco onde se atira insano
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre.
Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva
O imo do teu ser, o vórtice absoluto
Onde possa colher a grande flor da treva.
Amo-te os longos pés, ainda infantis e lentos
Na tua criação; amo-te as hastes tenras
Que sobem em suaves espirais adolescentes
E infinitas, de toque exato e frêmito.
Amo-te os braços juvenis que abraçam
Confiantes meu criminoso desvario
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio.
Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue
E me afogar de amor e chorar e chorar.
Amo-te os grandes olhos sobre-humanos
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem.
Por isso - isso e ainda mais que a poesia não ousa
Quando depois de muito mar, de muito amor
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa...
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!
Vinicius de Moraes
pindaro
Leopardi
Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.
És a princípio doce plasma submarino
Flutuando ao sabor de súbitas correntes
Frias e quentes, substância estranha e íntima
De teor irreal e tato transparente.
Depois teu seio é a infância, duna mansa
Cheia de alísios, marco espectral do istmo
Onde, a nudez vestida só de lua branca
Eu ia mergulhar minha face já triste.
Nele soterro a mão como a cravei criança
Noutro seio de que me lembro, também pleno...
Mas não sei... o ímpeto deste é doido e espanta
O outro me dava vida, este me mete medo.
Toco uma a uma as doces glândulas em feixes
Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos
Na massa cintilante e convulsa de peixes
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas.
E ponho-me a cismar... - mulher, como te expandes!
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância!
De coordenadas tais e horizontes tão grandes
Que assim imersa em amor és uma Atlântida!
Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia
Que faz meu corpo vil querer teu corpo moço.
E te amo, e te amo, e te amo, e te amo
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea
Como o mar ao penhasco onde se atira insano
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre.
Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva
O imo do teu ser, o vórtice absoluto
Onde possa colher a grande flor da treva.
Amo-te os longos pés, ainda infantis e lentos
Na tua criação; amo-te as hastes tenras
Que sobem em suaves espirais adolescentes
E infinitas, de toque exato e frêmito.
Amo-te os braços juvenis que abraçam
Confiantes meu criminoso desvario
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio.
Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue
E me afogar de amor e chorar e chorar.
Amo-te os grandes olhos sobre-humanos
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem.
Por isso - isso e ainda mais que a poesia não ousa
Quando depois de muito mar, de muito amor
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa...
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!
Vinicius de Moraes
pindaro
Jubila-te da memória
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Hilda Hist
pindaro
quinta-feira, abril 13, 2006
Águas-vivas
Faz-me animar o fogo
"A mulher não é um predador, pelo contrário, é a presa que faz uma emboscada ao seu predador."
ortega y gasset
Soltos de imensidão
Os anos, Elza, já não gravam nada,
porque gravamos nós o tempo todo.
O teu cuidar, faz-me animar o fogo
e cada dia em nós, jamais se apaga.
Provados somos e o provar é um gomo
desta romã partida pelas águas.
Somos o fruto, somos a dentada
e a madureza de ir no mesmo sonho.
Os anos, Elza, não consertam mágoas,
mas as mágoas não correm, se corremos.
Não encanece a luz, onde são remos
da limpa madrugada, os nossos corpos.
Amamos. No existir estamos soltos,
soltos de imensidão entre as palavras.
carlos nejar
pindaro
Fermoso tejo meu
Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!
Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!
Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.
francisco roíz lobo
pindaro
O amor fino
quarta-feira, abril 12, 2006
Esquece a tua alma
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira
pindaro
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira
pindaro
terça-feira, abril 11, 2006
Palavras que nos transportam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Alexandre O´Neill
pindaro
Acendeu-lhe no olhar brilho de estrelas
Reuniu Deus para compor a mulher - remate, coroa e epílogo da criação - a quinta essência de tudo quanto derramara de melhor no paraíso, onde a colocou, e do qual, ainda depois de perdido, as descendentes de Eva ficariam avivando recordações. Quis Ele, Sumo Factor, fundir-lhe o espírito brilhante e suave de um raio de oiro do sol, e de um raio prateado da lua. Deu-lhe a pureza da cecem, a alvura do lírio, o pudor e a graça da rosa, a modéstia da violeta; acendeu-lhe no olhar brilho de estrelas: descenou-lhe auroras de carmim e pérolas no sorrir; para fala, concentrou todas as melodias balbuciadas no frémito das vibrações, no murmurinho das fontes, e nos cânticos das aves; modelou-lhe a estatura pela dos arbustos mais esbeltos e mimosos; arredondou-lhe as formas, que lembrassem os frutos mais gentis e apetecidos, difundiu-lhe os cabelos como os ramos pendentes e movediços do salgueiro aquático, impregnou-lhos de electricidade; embebeu-os de um aroma que fala; revestiu-os de um brilhantismo; tão esmerado e pródigo os doutou, que o oiro, as pedrarias, os perfumes, as sedas e as flores ambicionando realça-las recebessem deles novo preço.
Antonio Feliciano de Castilho
pindaro
O movimento pendular do tempo
segunda-feira, abril 10, 2006
Rugido de mar
Quando as setas acertam de levar
Destes tiros assim desordenados,
Que estes moços mal destros vão tirando,
Nascem amores mil desconcertados
Formosas são algumas e outras feias,
Segundo a qualidade for das chagas;
Que o veneno espalhado pelas veias
Curam-no às vezes ásperas triagas.
Alguns ficam ligados em cadeias,
Por palavras subtis de sábias magas:
Isto acontece às vezes, quando as setas
Acertam de levar ervas secretas
luis de camões
(lusíadas)
pindaro
Recuerdos del futuro que presiento
"Cuerpos desnudos
almas vestidas de amor"
Música
Alegría
Poesía
erotismo por siglos retenido
despertando hoy, para sentirnos
bugas, lesbianas, dudosas
rompiendo cadenas
bailando al ritmo de la vida.
Brujas, magas, curanderas
entregándonos con fuerza
destruyendo esquemas.
Amigas nuevas y viejas conocidas
parejas
novias
compañeras
unidas al fin en el espacio.
Lágrimas
risaspromesas
deseo cumplidos y anhelos
volando por el tiempo
desencuentros que se quedan en el camino,
recuerdos del futuro que presiento.
Amparo Jimenez
pindaro
Vim desarmar os agravos
Que lhe seja cruel ou rigoroso
Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.
Amor é brando, é doce, e é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.
Se males faz Amor em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.
Mas todas suas iras são de Amor;
Todos os seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.
Luís de Camões
pindaro
domingo, abril 09, 2006
Um infinito de nós mesmos dista
Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria idéia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Cousa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.
Fernando Pessoa
pindaro
sábado, abril 08, 2006
Declaração de amor
Esta é uma declaração de amor;
amo a língua portuguesa.
Ela não é fácil. Não é maleável.
E, como não foi profundamente trabalhada pelo
pensamento, a sua tendência é a de não ter sutileza
e de reagir às vezes com um pontapé contra
os que temerariamente ousam transformá-la
numa linguagem
de sentimento de alerteza.
E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro
desafio para quem escreve.
Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e
das pessoas a primeira capa do superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado.
Às vezes assusta com o imprevisível de uma frase.
Eu gosto de manejá-la - como gostava de estar
montando num cavalo e guiá-lo pelas rédeas,
às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse
ao máximo nas minhas mãos. e este desejo
todos os que escrevem têm.
Um Camões e outros iguais não bastaram para
nos dar uma herança de língua já feita. Todos nós
que escrevemos estamos fazendo do túmulo do
pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do
encantamento de lidar com uma língua que não foi
aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever
e me perguntassem a que língua eu queria pertencer,
eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como nasci
muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro
para mim que eu queria mesmo era escrever em português.
Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só
para que minha abordagem do português
fosse virgem e límpida
Clarice Lispector
pindaro
O mais secreto bailar
sexta-feira, abril 07, 2006
Tão tirana e desigual
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Se alguma tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!
francisco roíz lobo
pindaro
Em bandós ondeados
"Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da Ericeira em Outubro, no Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no terraço, à luz da Lua! O meu amigo nunca contemplou aquele precioso tipo de encanto Lamartiniano. Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados. Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas... Ah! meu amigo, até eu, que já então laboriosamente anotava Hegel, depois de a encontrar numa tarde de chuva esperando a carruagem à porta do Seixas, a adorei durante três exaltados dias e lhe rimei um soneto!.."
eça de queirós
pindaro
quinta-feira, abril 06, 2006
Facilmente se escamugia e tinha bom encosto para alapardar-se
"(...) Mas saltara tão de improviso, que mal o viram relampejar, através do brejo, por uma das suas seitas, e num ápice se punha lá para a Cabração, em cujos tesos, a avaliar pelos latidos espaçados, os cães lhe perderam o rasto. Agora, em despeito da ressega, a cada passo os podengos soltavam a sua fanfarra e os gritos dos caçadores: cerca; aboca; ai, cãezinhos duma cana! repercutiam alacremente nas circunvolações dos oiteiros, debaixo do céu lavado.
O tojo, às duas margens do córrego, dava pela cinta dum homem; sobros e carvalhiços anões cresciam em touceiras tão fartas que a caça facilmente se escamugia e tinha bom encosto para alapardar-se."
Aquilino Ribeiro
pindaro
Um pouco mais
Fazer o baile e o fado
Mas não só de homem para homem a língua fala. Também encontro todas as palavras para falar com as árvores e as bestas. Encontro todas para mandar aparelhar o coche, fazer o baile e o fado. Um sermão. Tenho todas as palavras para ir à igreja ouvir o sermão e a ladainha. E tenho todas para ir à igreja ouvir o sermão e a ladainha. E tenho todas para comer à beira da estrada, junto às cestas. Tenho todas as palavras para a lavoira, todas para os ventos. A quantidade de palavras sobre os barcos, a maresia, o marejar, o almareado, a tramontana, tudo o mais que vem do mar, como se ele fosse nosso, ou o tivéssemos feito com a nossa própria língua. Palavras para atravessar todos os oceanos, para percorrer todas as praias.
Lídia Jorge
pindaro
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