domingo, dezembro 31, 2006
Dias de festas solenes
As perigosas tentações que espreitavam de todos os lados, para apanhar de surpresa o crente desprevenido, atacavam-no com redobrada violência nos dias de festas solenes.
Declínio e Queda do Império Romano,
Edward Gibbon
pindaro
Passagem
J. Cardoso Pires
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o
calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o
clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do
acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos
séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Carlos Drummond de Andrade
pindaro
A actividade da alma
Dizem os dois «amo-te» ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma.
Bernardo Soares
pindaro
Maior que o pensamento
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura.
Alberto Caeiro
pindaro
sábado, dezembro 30, 2006
Fio de pesca
No azul nocturno da paisagem, a estranheza da água despida do seu vulto.
Cartas de amor, letra a letra, para o espirito do lugar, para o desassossego da saudade.
Apanhar amores perdidos, como se apanham os peixes.
Preciso é fio de pesca.
D. Júlio
Acto de entendimento
Compreender não é procurar no que nos é estranho a nossa projecção ou a projecção do nossos desejos. É explicar o que se nos opõe, valorizar o que até aí não tinha valor dentro de nós. O diverso, o inesperado, o antagónico, é que são a pedra de toque dum acto de entendimento.
Miguel Torga
pindaro
Réussir ses desseins
Un esprit fin et un esprit de finesse sont très différents. Le premier plaît toujours; il est délié, il pense des choses délicates et voit les plus imperceptibles. Un esprit de finesse ne va jamais droit, il cherche des biais et des détours pour faire réussir ses desseins...
François de La Rochefoucauld
pindaro
Génération perpétuelle
Il y a dans le coeur humain une génération perpétuelle de passions, en sorte que la ruine de l'une est presque toujours l'établissement d'une autre.
François de La Rochefoucauld
pindaro
A mais estranha história
Você foi o melhor dos meus erros
A mais estranha história que alguém já escreveu
E é por essas e outras que a minha saudade
Faz lembrar de tudo outra vez.
Você foi a mentira sincera
Brincadeira mais séria que me aconteceu
Você foi o caso mais antigo
O amor mais amigo que me apareceu
Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim outra vez.
Esqueci de tentar te esquecer
Resolvi te querer por querer
Ivo Pessoa
pindaro
Um longo olhar me desse
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignonnes" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.
Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.
Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.
Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.
Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.
Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.
Cesário Verde
pindaro
Será como for
O texto é a única forma de identificar o sexo e a humanidade de alguém porque, ó poeta estranho, o sexo de alguém, é a sua narrativa. A sua, ou a que o texto conta, no seu lugar.
Assim o sexo será como for o lugar do texto.
Maria Gabriela Llansol
pindaro
Que a outra é contigo
Há a mulher que me ama e eu não amo.
Há as mulheres que me acamam e eu acamo.
Há a mulher que eu amo e não me ama nem acama.
Ah essa mulher!
Tu eras mais feliz, Apollinaire.
montado num obus, voavas à mulher.
Tu foste mais feliz, meu artilheiro.
tiveste amor e guerra.
Eu andei pra marinheiro,
mas pus óculos e fiquei em terra.
Upa garupa na mulher que me acama,
que a outra é contigo, coração que bem queres
sofrer pelas mulheres...
Alexandre O'Neill
pindaro
Opulenta y desierta
Todas las rosas blancas de la luna caían,
por la ventana abierta, en el cuerpo desnudo ...
Mirando aquellas carnes blandas que florecían,
hundido entre mis sueños, yo estaba absorto y mudo.
Oh su sexo con luna! ¡Esencia indefinible
de su sexo con luna! Hervían los blancores
de la carne, y el rostro, perdido en lo invisible
de la penumbra, lánguido, cerraba sus colores.
Era el enervamiento del dolor ... Y cual una
rosa de treinta años, opulenta y desierta,
el cuerpo blanco se elevaba hacia la luna
frío, espectral, azul, como una pompa muerta ...
Juan Ramón Jiménez
pindaro
sexta-feira, dezembro 29, 2006
Receptáculo
Sem usar de nenhum esforço, não ser mais que o receptáculo da vaga de infinito, e avançar no caminho do acaso levado pelo sopro das vozes interiores.
Jeanne de Vietinghoff
pindaro
Despertos, amam
Mistério das luzes e das sombras
Mais uma vez encontro a tua face,
Ó minha noite que julguei perdida.
Mistério das luzes e das sombras
Sobre os caminhos de areia,
Rios de palidez que escorre
Sobre os campos a lua cheia,
Ansioso subir de cada voz
Que na noite clara se desfaz e morre.
Secreto, extasiado murmurar
De mil gestos entre a folhagem
Tristeza das cigarras a cantar.
Ó minha noite, em cada imagem
Reconheço e adoro a tua face,
Tão exaltadamente desejada,
Tão exaltadamente encontrada,
Que a vida há-de passar, sem que ela passe,
Do fundo dos meus olhos onde está gravada.
Sophia de Mello Breyner
pindaro
Do sentido próprio ao figurado
Perfume das coisa não alcançáveis, doçura das felicidades imerecidas, beleza das verdades que o nosso pensamento não criou.
Jeanne de Vietinghoff
pindaro
Ave deslumbrante
Largada
Ó morte, velho comandante, é tempo, levantemos a âncora.
Este mundo aborrece-nos, ó morte, aparelhemos.
Beaudelaire
pindaro
Tudo acaba em canções
Uma vez que estes mistérios nos ultrapassam, finjamos ser os seus organizadores.
Jean Cocteau
pindaro
You might ever do
When you do dance, I wish you
A wave o' th' sea, that you might ever do
Nothing but that.
Shakespeare
pindaro
quinta-feira, dezembro 28, 2006
Só mais uma vez
Onde estás?
Nas nuvens ou na insensatez?
Me beije só mais uma vez,
depois volte para lá.
Paulinho Pedra Azul
pindaro
Solitárias
Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem, mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.
Marguerite Yourcenar
pindaro
Foi o nome que lhe dei
Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.
Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.
Eugénio de Andrade
pindaro
D´un regard
À toutes les femmes qui se donnent en l´espace d´un regard, pas de slow pour moi...
Solino
Aquele "dentro"
Paisagem ousada, como a vêem as videntes...
Aquele "dentro" para que converge o "fora" das estrelas.
Clarice Lispector
pindaro
Des chemins
On recontre sa destinée
Souvent par des chemins
Qu´on prend pour l´éviter
La Fontaine
pindaro
Hay que pedírsela
A todas las mujeres hay que pedírsela, porque la que no te lo da, te lo agradece
Porfirio Rubirosa
pindaro
Já é um pouquinho
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Guimarães Rosa
pindaro
Este instante fugidío
Visto que o passado morreu e o futuro é representado apenas pelo medo e pelo desejo - que é então este instante fugidio e não mensurável a que é impossível escapar?
Lawrence Durrel
Clea
pindaro
Só vem depois
O acaso é o grande mestre de todas as coisas. A necessidade só vem depois, não tem a mesma pureza.
Luis Buñuel
Pindaro
O seu poder abismal
Ah, que melhor alcaiota que a noite! Todos os demónios da sensualidade sairam à uma dos seus tugúrios, do céu, do inferno, da alma e da carne, e reforçaram o seu poder abismal.
Aquilino Ribeiro
pindaro
Drink deep
A little learning is a dangerous thing;
Drink deep, or taste not the Pierian spring.
Alexander Pope
pindaro
quarta-feira, dezembro 27, 2006
Que um dia será
e me tomando devagar,
como o mar avança na praia,
como eu sei que tem que ser
e sei que um dia será.
Claudia Mrczac
pindaro
Tenho-te em garra
Vem-me a vontade de matar em ti
toda a poesia
Tenho-te em garra; olhas-me apenas;
e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue,
na arritmia
Que faz meu corpo vil querer
teu corpo moço
vinicius de moraes
Pindaro
O mar e o inferno
Nunca o olho do ávido dirá, assim como não o dizem jamais o mar e o inferno: a mim basta
Matéo Alemán
Pindaro
É mais fina
Toma um conselho de amigo
Não te cases, Belzebú;
Que a mulher, como ser humano,
É mais fina do que tu.
Machado de Assis
Pindaro
Ilha
Deitada és uma ilha e raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias
David Mourão-Ferreira
pindaro
Mais aprimoradas
Qualquer um sabe proferir palavras enganadoras;
as mentiras do corpo exigem outra ciência.
François Mauriac
pindaro
Afinal de contas
O que ele amava nela era a sua«água» - como a de uma pedra preciosa.
É, afinal de contas, o que é realmente amado numa mulher - não a baínha de carne que a reveste - mas a sua «assinatura».
Lawrence Durrel
Lívia ou o enterrado vivo
Pindaro
Práticas de gosto
Porque, nas práticas de gosto, primeiro cansam os sentidos que os desejos
Francisco Roíz Lobo
pindaro
Santo e senha
What need I be so forward with him that calls not on me?
(Que precisão tenho eu de ir ao encontro de quem ainda não se lembrou de vir ter comigo?)
Shakespeare,
Henrique IV
( trd. de J. Benard da Costa)
pindaro
Uma cidade de navegar
" (…) Mas há a distância, e a distância inventa cidades, como bem sabemos (...) "
«Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade a navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro e até a brisa que corre me sabe a sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras, há sereias. O convés, em praça larga com uma rosa dos ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para o oceano. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão; um pouco atrás, está um rei-menino montado num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de tritões a cavalo de golfinhos. (...) »
José Cardoso Pires
pindaro
Impromptus
Let every artist
Strive to make his flower
A beautiful living thing
Something that will convince
The world that there may be
There are things more precious
More beautiful more lasting than life
Chas Mackintosh
pindaro
Depuis tes pieds
Car j'eusse avec ferveur baisé ton noble corps
Et depuis tes pieds frais jusqu'à tes noires tresses
Déroulé le trésor des profondes caresses.
Baudelaire
pindaro
Baise et rebaise-moi
Maîtresse, embrasse-moi, baise-moi, serre-moi,
Haleine contre haleine, échauffe-moi la vie,
Mille et mille baisers donne-moi, je t'en prie,
Amour veut tout sans nombre, amour n'a point de loi.
Baise et rebaise-moi ; belle bouche, pourquoi
Te gardes-tu là-bas, quand tu seras blêmie,
A baiser de Pluton ou la femme ou l'amie,
N'ayant plus ni couleur, ni rien semblable à toi ?
En vivant presse-moi de tes lèvres de roses ;
Bégaye en me baisant, à lèvres demi-closes
Mille mots tronçonnés, mourant entre mes bras.
Je mourrai dans les tiens, puis, toi ressuscitée,
Je ressusciterai ; allons ainsi là-bas,
Le jour tant soit-il court vaut mieux que la nuitée
Ronsard
pindaro