sexta-feira, dezembro 09, 2005
À espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa
Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve
Virgilio Ferreira
"Que se saiba há um único homem que se põe de pernas para o ar como as personagens de Chagall. Por exemplo: está muito bem a comer, surge um rafeiro e ei-lo de sapatos mais altos do que a toalha («Detesto estes cabrões, detesto estes cabrões, detesto estes cabrões») a navegar no azeite do bacalhau como os violinistas do pintor à deriva na tela. Por exemplo: a gente sobe à noite os degraus do elevador da Bica, iluminados de lado de taberna em taberna, eu a cambalear de cansaço nas escadas e ele a flutuar à minha volta como um anjo de óculos, conversando comigo de Antonioni e Godard, primos distantes, com relógios e amantes abraçados em torno do blusão. E há os bares, os cabisbaixos bares tristes de Lisboa, tumulares e desesperados, que o gás ilumina de pavios de azeite amarelo com duas pedras de gelo, debaixo da ponta acesa do cigarro americano, em homenagem a Hemingway e a Fitzgerald. E os restantes flibusteiros connosco. Artur Semedo, a servir atrás do bigode fino a sua ironia de Capitão Blood benfiquista; Dinis Machado, sempre a apear-se de um comboio de inocência perpétua, de sapatinho elegante e sobretudo à George Raft; e eu, o último e mais espantado da troupe, calado, de queixo numa água das pedras vazia. Quando anoitece, José Cardoso Pires começa a ganhar consistência no interior da roupa, íntimo de barmen e do labirinto estranho em que Lisboa se transforma, balizada de chafarizes e polícias que perderam, desde há séculos, o costume de sorrir. As árvores pingam trevas em cima de nós, os prédios aproximam-se, como as ovelhas, para adormecerem, encostando umas às outras os quadris das varandas. George Raft abotoa melhor o sobretudo. O Capitão Blood, de olho aceso para recordações distantes, ajusta-se na luva preta e no emblema do Colégio Militar onde moeu os miolos dos tenentes e fez coçar de aflição os sovacos dos maiores. E eu alinho um segundo gargalo de água das pedras à ilharga do primeiro, enquanto José Cardoso Pires levanta as duas mãos para se lançar no espaço rarefeito de fumo a explicar Jack Nicholson. Às duas da manhã, quando as rugas, piedosamente apagadas pela ausência de sol, fazem de nós um grupo de adolescentes à espera da primeira comunhão e de uma nova garrafa, e os empregados dos bares circulam entre as mesas com a diligência das senhoras que procedem à recolha das esmolas no ofertório das missas, movidos pelo afã cristão da cirrose, saímos para o ressonar a estores soltos dos bairros de Lisboa, o Dinis ocultando o revólver no sobretudo impressionante, o Artur, corsário do celulóide, a ferver de ideias de tal forma que o bigode lhe borbulha, eu a arrotar a água das pedras nas esquinas, que é a minha forma canina de erguer a perna e urinar, e o Zé, granito sem peso, à procura do Dupont nos bolsos para nos converter melhor a um golo do Nenê. E é ele o único de nós que voa, sem peso, por cima das mandíbulas das camionetas do lixo e dos pesadelos dos escriturários, tripulando a nuvem de um Renault branco que se some, a tremer, sobre os telhados, rumo às folhas de papel A4 que são os lençõis em que por fim nos deitamos, a rechear de ossos o pijama e de palavras adiadas os rectângulos das páginas. Hei-de informar-me se o Zé não dorme sem tocar nelas, ensanduichado pelo diálogo de duas personagens, apesar do lastro do mar da Caparica por dentro da cabeça e das folhas das árvores de São João de Brito ao comprido do sangue. E acorda no dia seguinte estremunhado, rodeado de gaivotas, por cima do hálito de baunilha do vendedor de gelados da Praia da Rainha. O hóspede de Job, meu Amigo."
Cardoso Pires visto por... António Lobo Antunes
in Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 101-103
(in CITI)
pindaro
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