segunda-feira, fevereiro 27, 2006
Aquele mover de olhos excelente
Aquele mover de olhos excelente,
aquele vivo espírito inflamado
do cristalino rosto transparente;
aquele gesto imoto e repousado,
que, estando na alma propriamente escrito,
não pode ser em verso trasladado;
aquele parecer, que é infinito
para se compreender de engenho humano,
o qual ofendo enquanto tenho dito,
me inflama o coração dum doce engano.
me enleva e engrandece a fantasia,
que não vi maior glória que meu dano.
Oh, bem-aventurado seja o dia
em que tomei tão doce pensamento,
que de todos os outros me desvia!
E bem-aventurado o sofrimento
que soube ser capaz de tanta pena,
vendo que o foi da causa o entendimento!
Luís de Camões
pindaro
Para viver um grande amor
Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso - para viver um grande
amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma
só mulher; pois ser de muitas, poxa ! é de colher ... - não tem
nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se
cavalheiro e ser de sua dama por inteiro - seja lá como for. Há que
fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada
e postar-se de fora com uma espada - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como
o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para
iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer
que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre
preparado para chatear o grande amor.
Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da
verdade de que não existe amor sem fieldade - para viver um grande
amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da
liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut, além de fiel, ser bem
conhecedor de arte culinária e de jud^0 - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas
bom sujeito; é preciso também ter muito peito - peito de remador. É
preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada
e sua viúva t ambém, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no
florista - muito mais, muito mais que na modista ! - para aprazer ao
grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo. É de
amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo
conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões,
sopinhas, molhos, estrogonofes - comidinhas para depois do amor. E
o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha
com uma rica e gostsoa farofinha, para o seu grande amor ?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver
sempre junto e até ser, se possível, um só defunto - pra não morrer de
dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também
com a mente, pois qualquer "baixo"seu, a amada sente - e esfria um
pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador
sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia - para viver um grande
amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se
arrisque !) e ser impermeável ao diz-que-diz-que - que não quer nada com
o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e
desvairada não se souber achar a bem-amada - para viver um
grande amor.
Vinicius de Moraes
amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma
só mulher; pois ser de muitas, poxa ! é de colher ... - não tem
nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se
cavalheiro e ser de sua dama por inteiro - seja lá como for. Há que
fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada
e postar-se de fora com uma espada - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como
o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para
iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer
que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre
preparado para chatear o grande amor.
Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da
verdade de que não existe amor sem fieldade - para viver um grande
amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da
liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut, além de fiel, ser bem
conhecedor de arte culinária e de jud^0 - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas
bom sujeito; é preciso também ter muito peito - peito de remador. É
preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada
e sua viúva t ambém, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no
florista - muito mais, muito mais que na modista ! - para aprazer ao
grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo. É de
amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo
conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões,
sopinhas, molhos, estrogonofes - comidinhas para depois do amor. E
o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha
com uma rica e gostsoa farofinha, para o seu grande amor ?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver
sempre junto e até ser, se possível, um só defunto - pra não morrer de
dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também
com a mente, pois qualquer "baixo"seu, a amada sente - e esfria um
pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador
sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia - para viver um grande
amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se
arrisque !) e ser impermeável ao diz-que-diz-que - que não quer nada com
o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e
desvairada não se souber achar a bem-amada - para viver um
grande amor.
Vinicius de Moraes
Me retece e configura
Este amor em meadas e triciclos
que nunca se divide, confluindo
e torna noite este sapato findo
e o firmamento, silencioso ciclo.
Este amor em meadas, infinito.
Em meadas de orvalho, desavindo,
em meadas e quedas, rugas, trincos
e rusgas, trinos, pios e sóis contritos.
Este amor me retece e configura.
Tem pressa de crescer, fogo calado.
Apenas queima, quando não se apura.
Parece interminável, quando tomba.
E só se apura, quando despertado.
Dissolvido me solve em clara onda.
Carlos Nejar
pindaro
De um calmo amor prestante
Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Vinicius de Moraes
pindaro
sexta-feira, fevereiro 24, 2006
Pastor e nauta
Dez chamamentos ao amigo
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Hida Hist
pindaro
Pelos séculos adiante
After charming Ludovico Ariosto with her legendary beauty, Lucrezia won herself a role in the author's epic poem "Orlando Furioso" before securing the love of Pietro Bembo, another great Renaissance poet who sang the praises of the duchess:
'If during this period you chance to find your ears are ringing it will be because I am ... writing pages about you that will still be read a century after we are gone.'
pindaro
'If during this period you chance to find your ears are ringing it will be because I am ... writing pages about you that will still be read a century after we are gone.'
pindaro
O amor fino
quinta-feira, fevereiro 23, 2006
A própria máscara
quarta-feira, fevereiro 22, 2006
O movimento pendular do tempo
"No vinho estão a verdade, a vida e a morte. No vinho estão a aurora e o crepúsculo, a juventude e a transitoriedade. No vinho está o movimento pendular do tempo. No vinho se espelha a vida."
Roland Betsch
pindaro
Nas ancas do prometer
A um fidalgo que lhe Tardará com uma Camisa que lhe Prometera
Quem no mundo quisera ser
Havido por singular,
Para mais se engrandecer,
Há-de trazer sempre o dar
Nas ancas do prometer.
E já que Vossa Mercê
Largueza tem por divisa,
Como todo mundo vê,
Há mister que tanto dê,
Que venha a dar a camisa.
LuisVaz de Camões
pindaro
Donde toda a tristeza se desterra
A formosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;
O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros
Das nuvens pelo ar a branda guerra.
Enfim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos ofrece ,
Me está, se não te vejo, magoando.
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias mor tristeza.
Luís de Camões
pindaro
Não trocaria
Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.
Amor é brando, é doce e é piedoso;
Quem o contrário diz não seja crido:
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens e inda aos deuses odioso.
Se males faz Amor, em mi se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.
Mas todas suas iras são de amor;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.
Luis Vaz de Camões
pindaro
segunda-feira, fevereiro 20, 2006
Voici des fleurs
Voici des fleurs, des fruits, des feuilles et des branches
Et puis voici mon cœur qui ne bat que pour vous
Ne le déchirez pas avec vos deux mains blanches
Et qu'à vos yeux si beaux, l'humble présent soit doux
Voici des fleurs, des fruits, des feuilles et des branches
La gare Montparnasse ô, vous souvenez-vous
Votre cœur était pur, votre robe était blanche
Votre amour était clair, votre corps était doux
Voici des fleurs, des fruits, des feuilles et des branches
Et voici l'escalier des premiers rendez-vous
Et mon baiser soudain sur votre peau si blanche
Vous si calme déjà, et moi déjà si fou
Voici des fleurs, des fruits, des feuilles et des branches
Et puis voici ce train qui me fait comme un trou
Et puis voici sa main entre vos deux mains blanches
Et voici son baiser qui hante votre cou
Voici des fleurs, des fruits, des feuilles et des branches
Et puis voici ce train qui s'éloigne sans nous
Je vous crie "Au secours" mais ma voix est si blanche
Et vous me laissez seul au milieu du mois d'Août
Voici des fleurs, des fruits, des feuilles et des branches
Et puis voici la pluie qui coule dans mon cou
Ô, ne l'essuyez pas avec vos deux mains blanches
Et laissez-moi souffrir mon chemin jusqu'au bout
Jusqu'au bout, jusqu'au bout ...
Paul Verlaine
pindaro
Verticalmente
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
– ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício.
Mário Cesariny de Vasconcelos
pindaro
sexta-feira, fevereiro 17, 2006
Rumor de tigre
Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
Eugénio de Andrade
pindaro
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
Eugénio de Andrade
pindaro
A barcos e bruma
quinta-feira, fevereiro 16, 2006
São terras sem ter logar
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos falla,
Mas que, se escutarmos, calla,
Por ter havido escutar.
E só se, meio adormecido,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ella nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter logar
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos dispertando,
Calla a voz, e ha só o mar.
Fernando Pessoa
pindaro
Ponto de ancoragem
"Através da neblina, as instruções conduzem-me a um mundo perdido no tempo e no espaço. De súbito, ele surge, entre realidade, arte e ritual"
Em busca de um ponto de ancoragem, onde brisas e anseios venham confluir, á vista do coral e das praias, desvendando a cerração do enigma e da onda em formação.
Solino
terça-feira, fevereiro 14, 2006
Rente
Livre e verde
Alma singular
CARTA AO OCEANO
Ó Grande Alma trágica e sombria!
Quando hás-de enfim, na campa repousar?
Após a luta persistente e fria,
Ah, quanto é bom morrer... dormir... sonhar...
Estrebuchas nas ânsias da agonia,
Há mil e tantos séculos, ó Mar!
E nunca cessas de lutar, um dia,
E nunca morres, Alma singular!
Mas, ao chegar teu último momento,
Quando zurzir nos ares a metralha
Da tua alma desfraldada ao vento:
Envolto nessa líquida mortalha,
Tu cairás prostrado, sem alento,
Como um guerreiro ao fim d'uma batalha!
António Nobre
pindaro
14 de Fevereiro
O Bispo das mercês
“Porque, nas práticas de gosto, primeiro cansam os sentidos que os desejos”
Frlobo
O império romano era governado por Claudius II e corria o ano 270.
Envolvido em campanhas militares sangrentas, o imperador começou a encontrar dificuldades na recruta de mais homens.
Convencido de que tais dificuldades vinham dos rapazes não quererem apartar-se das namoradas, amantes e mulheres, o imperador foi às do cabo e proibiu noivados e casamentos.
Mas, a menos de cem quilómetros de Roma, em Terni, o Bispo, valente e amigo do amor, continuou a noivar e a casar os jovens apaixonados.
Claudius condenou-o à morte. Foi decapitado em 14 de Fevereiro.
Era o Bispo Valentim.
Quanto ao amor, é um mistério que se prende com a química secreta e vai da temperatura da pele ao brilho do olhar. Um filtro mágico que lida com paixões, simpatias e humores: animais e espirituais.
É o sal e o sol.
A mais das vezes é Ana e a seguir é Maria.
solino
“Porque, nas práticas de gosto, primeiro cansam os sentidos que os desejos”
Frlobo
O império romano era governado por Claudius II e corria o ano 270.
Envolvido em campanhas militares sangrentas, o imperador começou a encontrar dificuldades na recruta de mais homens.
Convencido de que tais dificuldades vinham dos rapazes não quererem apartar-se das namoradas, amantes e mulheres, o imperador foi às do cabo e proibiu noivados e casamentos.
Mas, a menos de cem quilómetros de Roma, em Terni, o Bispo, valente e amigo do amor, continuou a noivar e a casar os jovens apaixonados.
Claudius condenou-o à morte. Foi decapitado em 14 de Fevereiro.
Era o Bispo Valentim.
Quanto ao amor, é um mistério que se prende com a química secreta e vai da temperatura da pele ao brilho do olhar. Um filtro mágico que lida com paixões, simpatias e humores: animais e espirituais.
É o sal e o sol.
A mais das vezes é Ana e a seguir é Maria.
solino
quinta-feira, fevereiro 09, 2006
Pó de amantes
Conheço o sal...
Conheço o sal da tua pele seca
Depois que o estio se volveu inverno
De carne repousada em suor nocturno.
Conheço o sal do leite que bebemos
Quando das bocas se estreitavam lábios
E o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
Os louros ou cinzentos que se enrolam
Neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minhas mãos
Como nas praias o perfume fica
Quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal
Da tua língua, o sal de teus mamilos,
E o da cintura se encurvando de ancas.
A todo o sal conheço que é só teu,
Ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
Um cristalino pó de amantes enlaçados.
Jorge de Sena
pindaro
O seu voo é mais fundo
Algumas Reflexões Sobre a Mulher
Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.
Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.
Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.
Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.
Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.
O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.
Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.
São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.
Eugénio de Andrade
pindaro
Até a brisa que corre me sabe a sal
" (…) para mim, panorâmicas e vistas gerais são quase sempre frases feitas ou cenários de catálogo. Claro que ver-te daqui, do Alto do Castelo, é deslumbrante, não digo que não. Mas há a distância, e a distância inventa cidades, como bem sabemos (...) "
"Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade a navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro e até a brisa que corre me sabe a sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras, há sereias. O convés, em praça larga com uma rosa dos ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para o oceano. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão; um pouco atrás, está um rei-menino montado num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de tritões a cavalo de golfinhos. (...) "
José Cardoso Pires
pindaro
quarta-feira, fevereiro 08, 2006
Lua em escorpião
terça-feira, fevereiro 07, 2006
Na consciência nua
O MAR
Ondas que descansam no seu gesto nupcial
abrem-se caem
amorosamente sobre os próprios lábios
e a areia
ancas verdes violetas na violência viva
rumor do ilimite na gravidez da água
sussurros gritos minerais inércia magnífica
volúpia de agonia movimentos de amor
morte em cada onda sublevação inaugural
abre-se o corpo que ama na consciência nua
e o corpo é o instante nunca mais e sempre
ó seios e nuvens que na areia se despenham
ó vento anterior ao vento ó cabeças espumosas
ó silêncio sobre o estrépito de amorosas explosões
ó eternidade do mar ensimesmado unânime
em amor e desamor de anónimos amplexos
múltiplo e uno nas suas baixelas cintilantes
ó mar ó presença ondulada do infinito
ó retorno incessante da paixão frigidíssima
ó violenta indolência sempre longínqua sempre ausente
ó catedral profunda que desmoronando-se permanece!
António Ramos Rosa
pindaro
Assim
À beiramágoa
'Screvo meu livro à beiramágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.
Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?
Ah, quando quererás voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
fernando Pessoa
pindaro
segunda-feira, fevereiro 06, 2006
Indício velado
Não toques, distância, no seu cabelo molhado;
Não lhe mexas. Rosto puro, às aguas posto e preso,
Uma imagem será o seu único peso,
Um pensamento o único beijo que me há dado.
Que o Índico persiga o indício velado;
Decore o Mar Vermelho o forte rosto aceso -
Mas não para morrer: para menos desprezo;
E eu próprio fique em meu amor atenuado.
Oh! platónico amor de ninguém e de alguma,
Espectro que criei e rodeei de lágrimas,
Vénus ainda ao longe no aro da minha espuma!
Imagem, força de vontade, imagem
Viva ou morta, não sei; imagem acre... mas
Verdadeira e suave, isso mais que nenhuma!
Vitorino Nemésio
pindaro
Descobrimentos, encobrimentos
"JUNTO AO CAIS DE PEDRA
Fim de tarde. Numa taverna, junto ao cais de pedra de Alfama, em Lisboa, dois velhos marinheiros estão sempre a esgatanhar-se. Pedro "Má Fortuna", o moreno, tange o alaúde e entoa, lamenta, geme:
- O São João já se afunda, foi por divina vontade...
Paulo "Tiro e Queda", o de pele mais coada, interrompe, contesta:
- É falso! Carregados como íamos, foi por desleixo dos homens.
Está ensarilhado o confronto. Diz o primeiro: levávamos pimenta pouca. O segundo contradiz: a nau, de outras mercadorias, levava excesso de carga. Novo lamento: desígnios da Providência. Novo ataque: imprevidência dos homens, isso sim! Remata o Pedro "Má Fortuna":
- Deus é quem sabe, Deus é quem pode, Deus é quem manda.
Contrapõe o Paulo "Tiro e Queda":
- E se os homens entram em desmando, por acaso a culpa cabe a Deus? Tão chorão és tu que, sem dar por isso, até cais na impiedade...
Levanta-se, exalta-se, gesticula, berra:
- És deveras apoucado. Nem reparas que desmando, ou desleixo, é atulhar um galeão de fardaria em barda, que sobe no convés até à altura dos castelos; é fazer-se ao mar em lenho apodrecido e vem uma vaga forte e logo parte o leme em dois e leva uma das metades; é içar pano velho e roto e vem uma súbita rajada que o rasga todo. Querer comer um boi inteiro numa única refeição, esse é o desmando maior, cobiça dos nossos fidalgos que fazem a carreira da Índia, gula tão desmedida que morrem enfartados os comilões. Perdem-se e, por eles, com eles vamos nós à perdição. Saber não é crença, é querença de experimentar para avaliar melhor. O que te faz falta, ó meu chorão, é pontaria de tiro e queda...
Levanta-se também o Pedro "Má Fortuna". Cada qual finca-se no seu terreno e gritam um com o outro, assanhados batem com as canecas na mesa, insultam-se, fideputa ruim, pagão, sáfio bargante, ímpio, homem rascão. Atracam-se para medir forças. Os mais novos, eu entre eles, tratamos de apartá-los. De lágrimas nos olhos, os dois velhos acabam porém por se abraçar. Bêbedos? Certamente, mas não apenas por vinho... Atravessaram juntos o mesmo e grande perigo; quer queiram ou não, apesar das fúrias breves e destemperos de linguagem, irmanados quedaram para sempre.
Sossegam, já sorriem do confronto. Mando vir outra canada de vinho, encho as três canecas. Enquanto bebemos, eles mais do que eu, tento desenlear aquele passo que tanto os atormenta."
(Manuel de Sousa Sepulveda
-F. Correia da Silva)
Fim de tarde. Numa taverna, junto ao cais de pedra de Alfama, em Lisboa, dois velhos marinheiros estão sempre a esgatanhar-se. Pedro "Má Fortuna", o moreno, tange o alaúde e entoa, lamenta, geme:
- O São João já se afunda, foi por divina vontade...
Paulo "Tiro e Queda", o de pele mais coada, interrompe, contesta:
- É falso! Carregados como íamos, foi por desleixo dos homens.
Está ensarilhado o confronto. Diz o primeiro: levávamos pimenta pouca. O segundo contradiz: a nau, de outras mercadorias, levava excesso de carga. Novo lamento: desígnios da Providência. Novo ataque: imprevidência dos homens, isso sim! Remata o Pedro "Má Fortuna":
- Deus é quem sabe, Deus é quem pode, Deus é quem manda.
Contrapõe o Paulo "Tiro e Queda":
- E se os homens entram em desmando, por acaso a culpa cabe a Deus? Tão chorão és tu que, sem dar por isso, até cais na impiedade...
Levanta-se, exalta-se, gesticula, berra:
- És deveras apoucado. Nem reparas que desmando, ou desleixo, é atulhar um galeão de fardaria em barda, que sobe no convés até à altura dos castelos; é fazer-se ao mar em lenho apodrecido e vem uma vaga forte e logo parte o leme em dois e leva uma das metades; é içar pano velho e roto e vem uma súbita rajada que o rasga todo. Querer comer um boi inteiro numa única refeição, esse é o desmando maior, cobiça dos nossos fidalgos que fazem a carreira da Índia, gula tão desmedida que morrem enfartados os comilões. Perdem-se e, por eles, com eles vamos nós à perdição. Saber não é crença, é querença de experimentar para avaliar melhor. O que te faz falta, ó meu chorão, é pontaria de tiro e queda...
Levanta-se também o Pedro "Má Fortuna". Cada qual finca-se no seu terreno e gritam um com o outro, assanhados batem com as canecas na mesa, insultam-se, fideputa ruim, pagão, sáfio bargante, ímpio, homem rascão. Atracam-se para medir forças. Os mais novos, eu entre eles, tratamos de apartá-los. De lágrimas nos olhos, os dois velhos acabam porém por se abraçar. Bêbedos? Certamente, mas não apenas por vinho... Atravessaram juntos o mesmo e grande perigo; quer queiram ou não, apesar das fúrias breves e destemperos de linguagem, irmanados quedaram para sempre.
Sossegam, já sorriem do confronto. Mando vir outra canada de vinho, encho as três canecas. Enquanto bebemos, eles mais do que eu, tento desenlear aquele passo que tanto os atormenta."
(Manuel de Sousa Sepulveda
-F. Correia da Silva)
pindaro
domingo, fevereiro 05, 2006
Tenho fases como a lua
LUA ADVERSA
Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
Cecília Meireles
pindaro
Não te amo mais
Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...
Clarice Lispector
(Agora leia esta poesia de baixo para cima)
pindaro
sábado, fevereiro 04, 2006
Jamais de la vie
A perfeição é feita de pequenos detalhes – não é apenas um detalhe.
(Michelangelo)
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
Se alguma tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!
francisco roíz lobo
pindaro
sexta-feira, fevereiro 03, 2006
Com frutos e pecado
A secreta viagem
No barco sem ninguém , anónimo e vazio,
ficámos nós os dois , parados ,de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos , o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado,
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa...alheio aos meus sentidos.
-Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa , em madeira esculpidos!
Inscrições Sobre as Ondas
Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.
David Mourão-Ferreira
pindaro
Como un teorema
Y navego en cada resonancia
"He aquí que el silencio fue integrado
por el total de la palabra humana,
y no hablar es morir entre los seres:
se hace lenguaje hasta la cabellera,
habla la boca sin mover los labios,
los ojos de repente son palabras...
...Yo tomo la palabra y la recorro
como si fuera sólo
forma humana,
me embelesan sus líneas
y navego
en cada resonancia del idioma..."
Pablo Neruda
pindaro
Sans coup férir
L'espionne
Pale espionne de l'Amour
Ma mémoire à peine fidèle
N'eut pour observer cette belle
Forteresse qu'une heure un jour
Tu te déguises
À ta guise
Mémoire espionne du cœur
Tu ne retrouves plus l'exquise
Ruse et le cœur seul est vainqueur
Mais la vois-tu cette mémoire
Les yeux bandés prête à mourir
Elle affirme qu'on peut l'en croire
Mon cœur vaincra sans coup férir
Guillaume Apollinaire
pindaro
quarta-feira, fevereiro 01, 2006
Breves enganos
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Luís de Camões
pindaro
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