Fim de tarde. Numa taverna, junto ao cais de pedra de Alfama, em Lisboa, dois velhos marinheiros estão sempre a esgatanhar-se. Pedro "Má Fortuna", o moreno, tange o alaúde e entoa, lamenta, geme:
- O São João já se afunda, foi por divina vontade...
Paulo "Tiro e Queda", o de pele mais coada, interrompe, contesta:
- É falso! Carregados como íamos, foi por desleixo dos homens.
Está ensarilhado o confronto. Diz o primeiro: levávamos pimenta pouca. O segundo contradiz: a nau, de outras mercadorias, levava excesso de carga. Novo lamento: desígnios da Providência. Novo ataque: imprevidência dos homens, isso sim! Remata o Pedro "Má Fortuna":
- Deus é quem sabe, Deus é quem pode, Deus é quem manda.
Contrapõe o Paulo "Tiro e Queda":
- E se os homens entram em desmando, por acaso a culpa cabe a Deus? Tão chorão és tu que, sem dar por isso, até cais na impiedade...
Levanta-se, exalta-se, gesticula, berra:
- És deveras apoucado. Nem reparas que desmando, ou desleixo, é atulhar um galeão de fardaria em barda, que sobe no convés até à altura dos castelos; é fazer-se ao mar em lenho apodrecido e vem uma vaga forte e logo parte o leme em dois e leva uma das metades; é içar pano velho e roto e vem uma súbita rajada que o rasga todo. Querer comer um boi inteiro numa única refeição, esse é o desmando maior, cobiça dos nossos fidalgos que fazem a carreira da Índia, gula tão desmedida que morrem enfartados os comilões. Perdem-se e, por eles, com eles vamos nós à perdição. Saber não é crença, é querença de experimentar para avaliar melhor. O que te faz falta, ó meu chorão, é pontaria de tiro e queda...
Levanta-se também o Pedro "Má Fortuna". Cada qual finca-se no seu terreno e gritam um com o outro, assanhados batem com as canecas na mesa, insultam-se, fideputa ruim, pagão, sáfio bargante, ímpio, homem rascão. Atracam-se para medir forças. Os mais novos, eu entre eles, tratamos de apartá-los. De lágrimas nos olhos, os dois velhos acabam porém por se abraçar. Bêbedos? Certamente, mas não apenas por vinho... Atravessaram juntos o mesmo e grande perigo; quer queiram ou não, apesar das fúrias breves e destemperos de linguagem, irmanados quedaram para sempre.
Sossegam, já sorriem do confronto. Mando vir outra canada de vinho, encho as três canecas. Enquanto bebemos, eles mais do que eu, tento desenlear aquele passo que tanto os atormenta."
(Manuel de Sousa Sepulveda
-F. Correia da Silva)
pindaro
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