sexta-feira, março 31, 2006

Tanto pior para ele


Os homens mais novos não entendem o... como é que vocês dizem?... o erotismo.

Até aos quarenta, caímos sempre no mesmo erro, não sabemos libertar-nos do amor:

um homem que, em vez de pensar numa mulher como complemento de um sexo, pensa no sexo como complemento de uma mulher, está pronto para o amor:

tanto pior para ele.




André Malraux
A Estrada Real



pindaro

Cravação fechada



“A esmeralda é uma pedra frágil que se quebra com facilidade, como a fé”
Catarina de Médicis










A regra só pode ser esta:
os lapidários lapidarão e os ourives engastarão.

E elas, as de cabelo asa de corvo e olhos pretos, usem, de primazia, na cercadura dos brincos a prata branca.

Com vistas para o realce.

Ponham, por cima, camisa aberta e cor de canela, que entraves raianos não molham beijos,

sabendo que reais são os méis e adulações no estreito das embocaduras, maiormente da do fremente limo voraz.

E, por cima de tudo, a destapar as pernas quase todas, que a seda preta, ávida de regard, mostre a sua solidão furtiva entre a saia e a carne nua.

Marcando territórios, os lobos florescem.



Doutor Lívio

quinta-feira, março 30, 2006

Nas durezas dos amores


“Como o que ao deixar a ilha inaudita
se exalta com o sonho que se propôs
na pérola ardente que o imita.”

Carles Riba
(Salvatge cor)






Encontrava-se na situação daquele pescador de não sei que lenda árabe que, ao tentar afogar-se no meio do oceano, chega a um país submarino onde o fazem rei.

Tudo começa pela parte da ligação entre a noite e a sensualidade, e continua por aí fora nas histórias de correr fado até chegar à água, a da nossa memória, e a outra, a do mar.

A irmandade com o oceano é o sal que no-la dá.

A sua percentagem nele e em nós é a mesma, e que incessantemente assim tenha sido e que assim continuamente venha a ser é o salvo-conduto, o farol das fugidas dos ameaços de quem se governa como pode nas durezas dos amores.




Doutor Lívio

Manifestação de uma lonjura


" O vestígio é a manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar o ser que o deixou.
A aura é a manifestação de uma lonjura, por mais próximo que possa estar aquilo que a evoca.
Com o vestígio apoderamo-nos da coisa, com a aura é ela que é senhora de nós."


walter benjamin


pindaro

quarta-feira, março 29, 2006

Devido a quem de mim tenho ausente




Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou.
Que mor não seja a dor que me deixouo
tempo, de meu bem desenganado.

Mas chorar não estima neste estado
aonde suspirar nunca aproveitou.
Triste quero viver, poi se mudou
em tisteza a alegria do passado.

Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que a sofre e sente.

De tanto mal, a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dele aventuro.




luis vaz de camões

pindaro

segunda-feira, março 27, 2006

Legenda


“Do latim medieval legenda, o que deve ser lido.
Representação de factos ou personagens ampliadas pela imaginação.
Todo o texto que acompanha uma imagem e lhe dá sentido.”

Dic. Le Robert



Brassaí conta que um ser muito jovem e belo, por quem um grande nome das letras francesas se apaixonara, lhe dera uma fotografia nas costas da qual tinha escrito estas palavras:

Look at my face; my name is
Might have been;
I am also called
No more, Too late, Farwell.

Na nudez do “Might have been” atravessam, ao mesmo tempo, a ausência e o excesso de sentido, levadas em dois sopros no mesmo vento.

Nesse canto elegíaco de desnudamento, perpassa, macio, o refrulho de Giulia Sissa: a alma é um corpo de mulher...

Naquela privação, voraz como um vinho que se entorna, só o tempo lambe o golpe, o tempo entrevisto por Yeats, pois com o tempo a sabedoria:


Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade.


Depois, fabricantes de simulacros, como animais marcaríamos em cada dia um novo território no mapa da rosa-dos-ventos, debruado de sabores ásperos e avivado de azul.




Doutor Lívio

Segunda-feira

“O eu foge-me sempre e é ele, no entanto, que, ao fugir da minha pessoa, a desenha e a imprime”
P. Valéry

“O que é o amor? O amor é assim:

Hoje beija-se, amanhã não se beija,
Depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe o que será…”



C Drummond de Andrade


píndaro

sexta-feira, março 24, 2006

Os que trabalham no mar


Nunca se distingue bem o vivido do não vivido
Sophia de Mello Breyner Andresen




















O Pescador, o Marinheiro Real e o Pirata

"As metáforas do Pescador e do Marinheiro Real e a alegoria do Pirata sintetizam a coadunação dos que trabalham no mar com a excelência do Reino e a sua relação profunda com esse mesmo Reino. O Pescador (p. 33), tem uma relação de fraternidade com “as coisas”, supera as emoções, tem o que Sophia designa ao longo da sua obra poética como “inteireza do ser” (11), integra o mar e o céu na sua realidade ontológica, mantém a sua atenção e abertura ao mundo com “serena lucidez”, o saber a um tempo experimentado e distanciado, próximo da sabedoria.

O Marinheiro Real (p.29) é o verdadeiro marinheiro da realidade do mar que se opõe, na poesia de Sophia, ao atrás referido Marinheiro sem mar, in Mar Novo, que se “afastou do que era eterno”, “porque o mar secou”, “porque o destino apagou o seu nome dos astros” e caminha “nas obscuras ruas da cidade sem piedade” (12). O Marinheiro Real vive em paz, integra-se no ritmo do cosmos, cultiva essa mesma “inteireza”, atinge a perfeição, desconhece a cidade – “as ruas”:

Vem do mar azul o marinheiro
Vem tranquilo ritmado inteiro
Perfeito como um deus,
Alheio às ruas.
Marinheiro Real, p. 29

O Pirata (p.25) conjuga o gosto de estar só no seu barco com o gosto de se identificar com os mastros, de “uivar” com eles, de ser livre, na brisa, de integrar a suavidade do regresso. Não se identifica nem admira o mar, mas, como o herói bélico que mede as suas forças e cultiva o auto-domínio e o controlo das emoções e sentimentos profundos, o pirata exprime a sua força de auto-domínio sobre os perigos de estar sozinho no barco (13) , através do que chama “desprezo sobre o mar”. Tenta neutralizar a ideia de monstro identificável com o desconhecido ou o inimigo potencial que o poderá inesperadamente surpreender nas viagens (14), nas metáforas dos “monstros que não falam” (tigres e ursos) que amarrou aos remos e que à partida não o paralisam e ele sabe dominar . O Pirata é a alegoria do homem intrépido, viajante solitário, que à partida vence tudo o que é impeditivo ou destrutivo, como que uma aspiração ou realidade de todo o ser humano que nasce, percorre solitário a vida. O que apenas tenta definir na sua errância, com a maior beleza e dignidade, é a sua ligação ao vento, às flores e às aves, identificadas respectivamente com a pátria, a amada e o seu desejo, no final do poema, como um sonho/vigília permanente ... "


(HELENA CONCEIÇÃO LANGROUVA
In: Revista Brotéria, Lisboa, Maio-Junho e Julho de 2002)



pindaro

quinta-feira, março 23, 2006

La perfección


"El mundo de la literatura, el mundo del arte, es el mundo de la perfección.
Es el mundo donde la belleza, que es lo que en última instancia le da su independencia, su verdad, su autenticidad, nos enfrenta a la acabado, a lo absolutamente abarcable con el conocimiento, con la conciencia además con una visón esférica que jamás llegamos a tener. Entonces, cuando nosotros regresamos de una gran novela, de ese mundo de ilusión, de ese espejismo, deslumbrante que es el de una ficción lograda que se nos impone como una verdad irresistible a este mundo nuestro, cuál es la reacción natural? El cotejo es inevitable. Y la conclusión de ese cotejo es el de que pequeño es este mundo comparado con ese mundo tan grande, tan rico del que acabamos de salir. Y que feo, mediocre y sórdido es este mundo comparado con ese mundo donde todo aprecia tan bello, incluso las peores aspectos de la condición humana, las manifestaciones más sombrías, tétricas, crueles de lo que es el hombre tenia un encanto que el escritor, el creador había conseguido impregnarle, que a nosotros nos lo hacia aceptable, incluso emocionante y por lo tanto bello".

Mario Vargas Llosa
"Literatura y política: dos visiones del mundo", 11 de mayo del 2000.



pindaro

terça-feira, março 21, 2006

Coisas efémeras que nunca acabam


"Quels doux supplices
Quelles délices,
De brusler dans les flammes
De la beauté des Dammes"

Antoine Boesset



"As mulheres não são pacientes com o amor. São pacientes com tudo e de tudo fazem hábitos. Do amor é que não. daí que muitas delas deixem de ser honestas e se entreguem a uma forma de criação que é principiar do nada coisas efémeras que nunca acabam. Chama-se a isto Quinta-Essência, a região do fogo e do amor.
(...)
Há, nesse círculo da quinta-essência, uma atracção tão arrebatada que ela serve de linguagem entre gente completamente estranha na raça e nos costumes. Um deleite, que não é dos sentidos mas superior nos seus efeitos..."



Agustina Bessa Luís



pindaro

Nusquama (nenhures)


"Navegavam sem o mapa que faziam"
sophia de melo breyner





O deslumbramento e a nostalgia da errância vão discorrendo por entre as emboscadas das horas.

É voltar a soltar amarras, é voltar a peregrinar o sul dos encantos, que só o incessante rumor da distância nos redime.



Leonardo

quinta-feira, março 16, 2006

do Portugal antigo


VOZES DO MAR


Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d'oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...

Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d'epopeias? Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
... Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!



Florbela Espanca


pindaro

quarta-feira, março 15, 2006

Como barcos no mar


Cantigas de portugueses
São como barcos no mar -
Vão de uma alma para outra
Com riscos de naufragar.



Fernando Pessoa


pindaro

Lua Cheia


A linguagem tende para a prosa, mas não chega lá.
Eugenio Montale


pindaro

segunda-feira, março 13, 2006

Imperador da língua portuguesa



O céu 'strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia, e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.



Fernando Pessoa


pindaro

quarta-feira, março 08, 2006

Depois do mais que me dera

Vem aí a Primavera
disse-me hoje a tua boca
depois do mais que me dera
o que vem é coisa pouca

Olha o Verão que já não tarda
disse-me à tarde o teu peito
por mais frutos que ele traga
não há nenhum tão perfeito

Ouço os passos do Outono
dizem-me à noite os teus braços
o que mais ambiciono
é ouvir só os teus passos

O Inverno há-de chegar
diz-me sempre a tua mão
quanto mais a mão esfriar
mais calor no coração

E dia a dia, por nós
passam as quatro estações
têrm sempre a tua voz
eu respondo-lhes depois


David Mourão Ferreira


pindaro

A Primavera é um chicote



Canção primaveril

Anda no ar a excitação
de seios subito exibidos
à torva luz de um alçapão,
por onde os corpos rolarão,
mordidos!

Ou é um deus, oi foi a Morte
que nos vestiu este torpor;
e a Primavera é um chicote,
abrindo as veias e o decote
ao meu amor!

Esqueço que os dedos têm ossos:
é só de sangue esta caricia;
apenas nervos os pescoços...
Mas nos teus olhos, nos meus olhos,
a luz da morte brilha.


David Mourão-Ferreira


pindaro

terça-feira, março 07, 2006

A vários ângulos


"Fumar ao espelho"

(...)
Não, nisto de alguém se interrogar ao espelho, olhos nos olhos, é consoante. Tem muitos ângulos - e tu estás aí, que não me deixas mentir. Vários ângulos. Há quem procure, santa inocência, fazer um discurso de silêncio capaz de estilhaçar o vidro e há quem espere receber, por reflexo da própria imagem, algum calor animal que desconhece. Seja como for, o que dói, e assusta, e é triste e desastradamente cómico neste exercício, é o pleonasmo de si mesma em que a pessoa se transforma. Repete-se. Se bem que com feroz independência (todo o seu esforço é esse) repete-se em imagens controversas que a possam explicar.
(...)
Tudo isto, já te disse, tem de ser encarado a vários ângulos. Sempre a vários ângulos, não te esqueças, porque, segundo alguns, os personagens deste tipo são de visagem errante. Como toda a gente? Como toda a gente, possível. Só que esse que tens diante de ti nunca na vida soube administrar a sua ima em pública, como se pode depreender logo à primeira abordagem. Porquê, não se sabe; as razões podem ser muitas. Pudor, impaciência, falta de traquejo, sei lá. Há também a independência, a independência... demasiado impeditiva, sempre foi, mas por essa ou por outras razões, a verdade é que esse talento nunca ele teve. E não se julgue que a lacuna não é grave porque a imagem de marca que os corretores das Letras e os lobbies da Opinião põem a circular no mercado a cotações de estarrecer. Ah, os lobbies, ah, os lobbies. Ah, perfumadas sacristias onde o livro em branco, antes de ser livro, já foi condenado ou marcado com uma pétala seca na página da eternidade.
(...)
Aqui tens, José, o homem que te interroga. Que te fuma e te duvida. Que te acredita.
E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia.
Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?


Cardoso Pires por Cardoso Pires
[ in CITI ]


pindaro

segunda-feira, março 06, 2006

Bugatti verde


“Viajante do mar cavalgando ventos
deixando um rasto de
pássaros entre as nuvens”

Li Bai













Cheirava a cedro.

Com garbo e greta vagueava na ambivalência ou no Grand Hôtel de Monte-Carlo, sussurrando leves profunduras ao Great Gasby e à Dolores Del Rio, por entre bolhas de champagne e outras maciezas.

Desassossegando os que amava e pintava, era um tableau vivant com nome de pseudónimo, e uma baronesa de barão húngaro com vestígios de silêncio na lâmina.

D´Annunzio definiu-a como a mulher de ouro, a ela, a imprecisa como uma esmeralda, a ela, a de unhas vermelho-sangue, sumptuosamente ouro-arruivada.

Era um ser alto e esguio, mas com talhe, com sinuosidades consumadas nos quatro ventos que abriam as saias.

Diva dos roaring twenties e viajante do Normandie, deixou Nana de Herrera nua demais, e viu o conde Furstenberg Herdringen como um Mefistófeles saído da neblina da Berlim de Klaus Mann.

Para ela a transgressão era só um debrum, e, perversa como Ingres, era uma ávida predadora da sensualidade bidireccional, de veludo e carne nua.

Onde acabava o vestido e começava o corpo?

No altar dos seus deuses só um senhoreava – o estilo.

Baronesa Tamara de Lempicka-Kuffner.

La belle polonaise.





leonardo

domingo, março 05, 2006

Era de outra natureza

«Receio que ele me quis dar uma

noite igual à que eu lhe dei; mas,

se foi por isso que o fez, soube

vingar-se mal, pois esta noite foi

apenas a terça parte da sua; além

disso, o frio era de outra

natureza»


(Boccacio in Decameron)


pindaro

Do azul profundo

"Vejo surgir o azul do azul profundo"
f pessoa

Escutai o mar

O mar geme ao longe e grita na solidão

A minha voz fiel como a sombra

Quer ser finalmente a sombra da vida

Quer ser, ó mar vivo, infiel como tu

Guillaume Apollinaire

pindaro

Demasiado cedo



«Vem ter comigo», disse ele, e esqueceu

«Ama-me»: mas o amor faz-nos medo

preferimos partir e voar para a Lua

Do que dizer as palavras certas demasiado cedo

Louis Phillipe

(Yuri Gagarin)

pindaro

Às vezes


Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.


Carlos Drummond de Andrade


pindaro

sábado, março 04, 2006

Barco abandonado


A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.


Fernando Pessoa

pindaro

sexta-feira, março 03, 2006

Com palavra santo e senha



Naquele trilho secreto,
Com palavra santo e senha.
Eu fui língua e tu dialecto.
Eu fui lume, tu foste lenha.
Fomos guerras e alianças,
Tratados de paz e passangas.
Fomos sardas, pele e tranças,
Popeline, seda e ganga.
Dessa vez tu não cumpriste,
E faltaste ao prometido.
Eu fiquei sentido e triste.
Olha que isso não se faz.
Disseste se eu fosse audaz,
Tu tiravas o vestido,
E o prometido é devido.
Rompi eu as minhas calças.
Esfolei mãos e joelhos.
E tu reduziste o acordo,
A um montão de cacos velhos.
Eu que vinha de tão longe,
Do outro lado da rua.
Fazia o que tu quizesses,
Só para te poder ver nua.
Quero já os almanaques.
Do Fantasma e do Patinhas,
Os Falcões e os Mandrakes.
Tão cedo não terás novas minhas.
Dessa vez tu não cumpriste,
E faltaste ao prometido.
Eu fiquei sentido e triste.
Olha que isso não se faz.
Disseste se eu fosse audaz,
Tu tiravas o vestido,
E o prometido é devido.



carlos tê


pindaro

Sem ter de quê







Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, 'star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?


Fernando Pessoa

pindaro

Nem falar dos seus motivos





Garras dos sentidos


Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos.
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas.
Não quero cantar amores.

paraísos proibidos,
contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

São demência dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

Da má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.



Agustina Bessa-Luís


pindaro

quinta-feira, março 02, 2006

Punhal de prata



Guitarra

Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.
Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
- no cabo flores abertas,
no gume, a medida exata,
exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.
A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata



cecília meireles



pindaro

Pede o desejo, Dama, que vos veja


Pede o desejo, Dama, que vos veja,
não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja
que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo o desejado,
porque não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da natureza,

assi o pensamento (pola parte que
vai tomar de mim, terreste [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.


Luis de Camões



pindaro

Andanças



Livro de Horas


Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso

O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!



Miguel Torga


pindaro

A cor do lume






Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.



Eugénio de Andrade





pindaro

quarta-feira, março 01, 2006

Posto que é chama


Soneto da Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao meu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive) :
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Moraes


pindaro