sexta-feira, março 24, 2006

Os que trabalham no mar


Nunca se distingue bem o vivido do não vivido
Sophia de Mello Breyner Andresen




















O Pescador, o Marinheiro Real e o Pirata

"As metáforas do Pescador e do Marinheiro Real e a alegoria do Pirata sintetizam a coadunação dos que trabalham no mar com a excelência do Reino e a sua relação profunda com esse mesmo Reino. O Pescador (p. 33), tem uma relação de fraternidade com “as coisas”, supera as emoções, tem o que Sophia designa ao longo da sua obra poética como “inteireza do ser” (11), integra o mar e o céu na sua realidade ontológica, mantém a sua atenção e abertura ao mundo com “serena lucidez”, o saber a um tempo experimentado e distanciado, próximo da sabedoria.

O Marinheiro Real (p.29) é o verdadeiro marinheiro da realidade do mar que se opõe, na poesia de Sophia, ao atrás referido Marinheiro sem mar, in Mar Novo, que se “afastou do que era eterno”, “porque o mar secou”, “porque o destino apagou o seu nome dos astros” e caminha “nas obscuras ruas da cidade sem piedade” (12). O Marinheiro Real vive em paz, integra-se no ritmo do cosmos, cultiva essa mesma “inteireza”, atinge a perfeição, desconhece a cidade – “as ruas”:

Vem do mar azul o marinheiro
Vem tranquilo ritmado inteiro
Perfeito como um deus,
Alheio às ruas.
Marinheiro Real, p. 29

O Pirata (p.25) conjuga o gosto de estar só no seu barco com o gosto de se identificar com os mastros, de “uivar” com eles, de ser livre, na brisa, de integrar a suavidade do regresso. Não se identifica nem admira o mar, mas, como o herói bélico que mede as suas forças e cultiva o auto-domínio e o controlo das emoções e sentimentos profundos, o pirata exprime a sua força de auto-domínio sobre os perigos de estar sozinho no barco (13) , através do que chama “desprezo sobre o mar”. Tenta neutralizar a ideia de monstro identificável com o desconhecido ou o inimigo potencial que o poderá inesperadamente surpreender nas viagens (14), nas metáforas dos “monstros que não falam” (tigres e ursos) que amarrou aos remos e que à partida não o paralisam e ele sabe dominar . O Pirata é a alegoria do homem intrépido, viajante solitário, que à partida vence tudo o que é impeditivo ou destrutivo, como que uma aspiração ou realidade de todo o ser humano que nasce, percorre solitário a vida. O que apenas tenta definir na sua errância, com a maior beleza e dignidade, é a sua ligação ao vento, às flores e às aves, identificadas respectivamente com a pátria, a amada e o seu desejo, no final do poema, como um sonho/vigília permanente ... "


(HELENA CONCEIÇÃO LANGROUVA
In: Revista Brotéria, Lisboa, Maio-Junho e Julho de 2002)



pindaro

Sem comentários: