segunda-feira, agosto 01, 2005

Valor metafísico







Meu pai contava que antigamente — questão de séculos, de anos? — a lotaria na Babilônia era um jogo de carácter plebeu.

Referia (ignoro se com verdade) que os barbeiros trocavam por moedas de cobre, rectangulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos.

Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra confirmação da sorte, moedas cunhadas de prata.

O procedimento era elementar, como os senhores vêem.

Naturalmente, essas "lotarias" fracassaram.

A sua virtude moral era nula.

Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança.

Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas lotarias venais começaram a perder dinheiro.

Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de alguns números adversos no censo dos números favoráveis.

Mediante essa reforma, os compradores de rectangulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa.

Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público.

Os babilônios entregaram-se ao jogo.

O que não adquiria sortes era considerado um pusilânime, um apoucado.

Com o tempo esse desdém justificado duplicou-se.
Eram desprezados aqueles que não jogavam, mas também o eram os que perdiam e abonavam a multa.

A Companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se nas caixas faltasse a importância quase total das multas.

Propôs uma ação judicial contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas, ou a uns dias de prisão.

Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia.

Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: o seu valor eclesiástico, metafísico.

Pouco depois, as informações dos sorteios omitiram as referências de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso.

Esse laconismo, quase inadvertido a seu tempo, foi de capital importância.

Foi o primeiro aparecimento, na lotaria, de elementos não pecuniários.

O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos."





jorge luis borges



pindaro

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