sexta-feira, setembro 30, 2005
Louvor da língua aprazível
F.R.L
“
(...)
- Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) pelas cousas da nossa Pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e da escritura.
Para falar é engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com um certo movimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias.
A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência de gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala.
Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade.
E se à língua Hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem os seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.
(...)
“
Francisco Roíz Lobo
"Corte na Aldeia"
pindaro
Mate e brilhante
Second star to the right and straight on till morning.”
JM Barrie (Peter Pan)
Vogavam à flor da vaga num azul intenso de mar, a cruzar prosas na beleza da passagem e com o Bugio no alinhamento.
Disse o mais adiantado, junto à proa, metido a devaneios:
Os mares de amores são a expressão superior de criação e comportamento.
Sobretudo porque são à prova do frio e do quente, assentiu o que estava mais ao meio, que ajuntou: isto do mar leva-me ao O´Neill, com o seu “Passe um Verão desafogado”.
O terceiro, ao leme, retrucou, mareando a onda: “Vá de metro Satanás.”
Dito isto mandou-se ao colo e à viela duma botelha de branco que, geladinha como geada, também fora de viagem.
O que estava mais ao meio, aficionado O´Neillista, a esse deu-lhe a fome e desviou dos “empifados de Outono” a promessa do seu comer mais querido: “arroz de pato ao luar”.
O do leme bordeou a onda e meteu outra rota: isto das escolhas, das eleições, está farrusco...
No fundo temos dois taludos que dão razão ao Ezra Pound quando dizia que "governar é a arte de criar problemas cujas soluções mantenham a população em suspense".
Mas olha, mandou da proa o mais adiantado, nestas coisas o pior é quando há sexo à mistura, fica o enredo turvo, que as coisas da natureza são complexas.
O Fialho é que os topava a todos, a eles e a elas, ajuizou alto o que estava mais ao meio. Era vê-lo a deslombar:
"Está a gente a ver como estas pécoras se fazem ao lugar na capela-mor, umas às outras, donde melhor possam mostrar as mamas aos fregueses. Eh, mulherzinhas! Fora daí, que empulgam os tapetes. Não vêem isto? A fazerem-se plongeons, como duquesas. Ora os coiros!"
Bem, remoeu o mais adiantado, mas assim como assim, se o que lá está agora sair já se apinhou mais um, lá no partido, a prometer que se adianta.
Esse perrichon, disse o que estava mais ao meio, fialhista acerado, só me lembra aquele deputado que, dirigindo-se ao ministro Barjona, já cansado de lhe pedir lugar farto, se atreveu a dizer que se a pretensão não visse despacho, ele atiraria com a albarda.
"-Não atire, não atire – respondeu-lhe Barjona – que eu não estou acostumado a montá-lo em pêlo."
Isto de facto não está fácil, ruminaram, à uma, o do leme e o mais adiantado.
Píndaro
Pano cru rasgado
Wilson Bueno
Seria uma mulher vestida à trágica, com falares literários e olhos de lua.
Loba clandestina de contrabandos vadios.
A vertigem desenhando a distância.
O escrúpulo sorvido à frente do impulso.
A escorrer vícios e milagres.
Fêmea finíssima, dançaria cheia de spleen entre garrafas de conhaque e fumaças de charutos.
Esculpida na verdade profunda do pego das paixões.
No território raso e no arraial voraz.
Nas elegâncias do pecado e na projecção do encontro.
Despida nas suas sedas,
e vestida de sedes.
Assim seria.
Solino
Faixa pregada ao desdém
Mote
Antes que o Sol se levante,
Vai Vilante a ver o gado,
Mas não vê Sol levantado
Quem vê primeiro a Vilante.
Voltas
É tanta a graça que tem
Com uma touca mal envolta,
Manga de camisa solta,
Faixa pregada ao desdém,
Que se o Sol a vir diante,
Quando vai mungir o gado,
Ficará como enleado
Ante os olhos de Vilante.
Descalça às vezes se atreve
Ir em mangas de camisa,
Se entre as ervas neve pisa
Não se julga qual é neve;
Duvida o que está diante
Quando a vê mungir o gado,
Se é tudo leite amassado,
Se tudo as mãos de Vilante.
Se acaso o braço levanta,
Porque a beatilha encolhe,
De qualquer pastor que a olhe
Leva a alma na garganta;
E inda que o Sol se alevante
A dar graça e luz ao prado,
Já Vilante lha tem dado,
Que o Sol tomou de Vilante.
Francisco Roiz Lobo
pindaro
Tudo quanto é, passa
"Agora quisera eu perguntar ao mundo, se como me enche a memória de tantas coisas, que todas passaram, me mostrará alguma aos olhos que não passasse?
As sete fábricas a que a fama deu o nome de maravilhas, acrescentaram alguns como oitava o anfiteatro romano.
Mas a maravilha oitava, ou nona, é que todas essas maravilhas, que pareciam eternas, passaram.
A primeira maravilha foram as pirâmides do Egito, a segunda os muros de Babilônia, a terceira a torre de Faros, a quarta o colosso de Rodes, a quinta o mausoléu de Cária, a sexta o Templo de Diana Efesina, a sétima o simulacro de Júpiter Olímpico.
E deixando o anfiteatro, de que só se vêem as ruínas, as pirâmides caíram, os muros arrasaram-se, o colosso desfez-se, o mausoléu sepultou-se, a torre sumiu-se, o farol apagou-se, o templo ardeu, e o simulacro como simulacro, desvaneceu-se em si mesmo.
Tem mais que dizer, ou que opor o mundo? Só pode apelar para as mais fortes e bem fundadas cidades, cortes e metrópoles dos mais poderosos impérios: argumento verdadeiramente de grande boato, antes de se lhe tomar o peso.
Nínive, corte de Nino, foi a maior cidade do mundo: andava-se de porta a porta, não menos que em três dias de caminho; edificada de propósito com arrogância de que nenhuma outra a igualasse, como não igualou. Mas onde está essa Nínive?
Ecbátana, corte de Arfaxad, e cidade que o texto sagrado chama potentíssima, era cercada de sete ordens de muros, todos de pedras quadradas, cada uma com vinte e sete palmos por todas as faces, e as portas com a prodigiosa. altura de cem côvados. Mas onde está essa Ecbátana?
Susa, corte de Assuero, e metrópole de cento e vinte e sete Províncias, cujo palácio representava um céu estrelado, fundado sobre colunas de oiro e pedras preciosas, e cujos muros eram de mármores brancos e jaspes de diferentes cores; bem se deixa ver quão forte e inexpugnável seria, pois defendia tão grande monarca, dominava tantos reinos e guardava tantos tesouros. Mas onde está essa Suas?
Se houvéssemos de fazer a mesma pergunta às ruínas de Tebas, de Memphis, de Bactra, de Cartago, de Corinto, de Sebaste, e da mais conhecida de todas, Jerusalém, necessário seria dar volta a toda a redondeza da Terra.
De Tróia disse Ovídio: Jam seges est ubi Troia fuit .E o mesmo podemos dizer das planícies, vales e montes, donde se levantavam às nuvens aqueles vastíssimos corpos de casas, muralhas e torres. De umas se não sabem os lugares onde estiveram; doutras se lavram, semeiam, e plantam os mesmos lugares, sem mais vestígios de haverem sido, que os que encontram os arados, quando rompem a terra.
Para que os homens compostos de carne e sangue se não queixem da brevidade da vida, pois também as pedras morrem; e para que ninguém se atreva a negar, que tudo quanto houve, passou, e tudo quanto é, passa."
padre Antonio Vieira
pindaro
quarta-feira, setembro 28, 2005
O delito fica impune
"A literatura é uma arte predadora. Ela aniquila o real de forma simbólica, substituindo-o por uma irrealidade à qual dá vida fictícia, com a fantasia e as palavras, um artifício armado com materiais sempre saqueados à vida.
Mas geralmente esta operação é discreta, e frequentemente inconsciente, pois quem escreve rouba e pilha - e manipula e deforma - o vivido, a experiência real, mais por instinto e intuição do que por deliberação consciente; logo, a sua arte, a sua feitiçaria, a sua prestidigitação verbal estendem uns véus impenetráveis sobre o furtado. Se tiver talento, o delito fica impune."
Mario Vargas Llosa
pindaro
Será de amor e de passagem
Louco ou não, ébrio sempre
Avarento com as lamúrias
Prescrevo estas ordenações
Para que afixadas sejam...
Armeiro, vim desarmar
Os agravos.
O que fôr.
Será de amor e de passagem
Pousada me haveis de dar
E aos meus cavalos pastagem.
Carlos Nejar
pindaro
Cair verticalmente
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
– ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício.
Mário Cesariny de Vasconcelos
pindaro
Se alevanta
As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Luis Vaz de Camões
pindaro
Não tentes responder
Fuazi Arap
"A noite era uma possibilidade excepcional. Em plena noite fechada de um verão escaldante um galo soltou seu grito fora de hora e uma só vez para alertar o início da subida pela montanha. A multidão embaixo aguardava em silêncio.
Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela estava personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura andrógina criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez:
assim como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos enxergando. Aos poucos enxergavam o Ela-ele e quando o Ele-ela lhes aparecia com uma claridade que emanava dela-dele, eles paralisados pelo que é Belo diriam:
"Ah, Ah". Era uma exclamação que era permitida no silêncio da noite. Olhavam a assustadora beleza e seu perigo. Mas eles haviam vindo exatamente para sofrer o perigo.
(...)
Epílogo:
Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal que me guiou. Onde estivestes de noite? Ninguém sabe. Não tentes responder - pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus. A-Deus."
Clarice Lispector
("Onde estivestes de noite?"
- 1994)
pindaro
Uma benção estranha
"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
Clarice lispector
pindaro
sexta-feira, setembro 23, 2005
No paladar de mudar mais se sente o gosto agudo
Xácara das Mulheres Amadas
Quem muitas mulheres tiver,
em vez de uma amada esposa,
mais se afirma e se repousa
pera amar sua mulher;
quem isto não entender...
em cousas d'amor não ousa,
em cousas d'amor não quer!
Quantas mais, mais se descansa,
mais a gente serve a todas;
quantas mais forem as bodas,
quantos mais os pares da dança,
menos a dança nos cansa
o gosto d'andar nas rodas.
Que quantas mais, mais detido
a cada uma per si;
nem cansa tanto o que vi,
nem fica o gosto partido;
ao contrário, é acrescido
a cada uma per si!
No paladar de mudar
mais se sente o gosto agudo:
que amar nada ou amar tudo
é estar pronto a muito amar;
o enjoo vem de não estar
a par do nada e do tudo.
Mais facilmente se chega
pera muitas que pera uma;
e a razão é porque, em suma,
se esta razão me não cega,
quem quer que muitas adrega
é cono tendo... nenhuma!
Com muitas, descanso vem,
faz o desejo acrescido:
que é o mais apetecido
aquilo que se não tem;
e o apetite é o bem;
e em saciá-lo é perdido.
Também a mulher que tem
seu marido repartido
é mais gostosa do bem
que advém de seu marido!
Tão gostosa e recolhida,
tão pronta e tão conformada,
quanto o gosto é não ter nada;
porque o gosto é ser servida
e não o estar contentada.
O gosto é cousa corrente,
e quem o tem já não sente
o gosto dessa corrida,
que tê-lo, é cousa... jazente...
que tê-lo, é cousa... perdida!
Ora, pois, nesta jornada
não vi nada mais de amar
que ter muito por chegar
e cousa alguma chegada;
não vi nada mais de ter...
que ter muito que perder...
e cousa alguma ganhada!
MÁRIO SAA
(in poesia eterna)
pindaro
Taberna-tavolagem da Porta do Ferro
"E assim era, com efeito, como o leitor poderá averiguar por seus próprios olhos e ouvidos, se, manso, manso e disfarçado quiser entrar connosco na mui afamada e antiga taberna do velho Folco Taca, que nos fica bem perto, logo ao sair da Sé, na rua que sobe para os Paços da Alcáçova, sete ou oito portas acima dos Paços do Concelho.
A taberna de micer Folco Taca, genovês que viera a Portugal ainda impúbere, como pajem de armas de famoso almirante Lançarote Pessanha, e que havia anos abandonara o serviço marítimo para se dar à mercância, era a mais célebre entre todas as de Lisboa, não só pelo luxo do seu adereço, e pela bondade dos líquidos encerrados nas cubas monumentais que a pejavam, mas também porque, em um aposento mais retirado e interior, uma vasta banca de pinho e muitos assentos rasos os escabelos ofereciam todo o cómodo aos tavolageiros de profissão para perderem ou ganharam aí, em noites de jogo infrene, os belos alfonsins e maravedis de ouro ou as estimadas dobras de D. Pedro I, o qual, ao contrário dos seus antecessores e sucessores, julgara ser mais rico e poderoso fazendo cunhar moeda de bom toque e peso do que roubando-lhe o valor intrínseco e aumentando-lhe o nominal, segundo o costume de todos os reis no começo do seu reinar.
Micer Folco soubera estender grossas névoas sobre os olhos do corregedor da Corte e de todos os saiões, algozes e mais família da nobre raça dos aguazis sobre a ilegalidade de semelhante estabelecimento industrial. O elixir que ele empregara para produzir essa maravilhosa cegueira não sabemos nós qual fosse; mas é certo que não se perdeu com a alquimia, porque se vê que ele existe em mãos abençoadas, produzindo, ainda hoje, repetidos milagres, em tudo análogos a este.
Era, pois, na taberna-tavolagem da Porta do Ferro, conhecida vulgarmente por tal nome em consequência da vizinhança dessa porta da antiga cerca, onde os ruídos vagos e incertos que sussurravam pelas ruas da cidade soavam mais alta e distintamente, como em sorvedouro marinho as ondas, remoinhando e precipitando-se, estrepitam no centro da voragem com mais soturno e retumbante fragor."
Alexandre Herculano
"ARRAS POR FORO DE ESPANHA"
(in mundo cultural)
pindaro
Um por um
"Uma mesa cheia de feijões. O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão. O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo. Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas. O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território é o processo da CIVILIZAÇÃO. O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA. É mais difícil a passagem da civilização para a cultura do que a formação de civilização. A civilização é um fenómeno colectivo. A cultura é um fenómeno individual. Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura."
Almada Negreiros
Ensaios
(in citador)
pindaro
É muito trabalhoso
"Porque é que a TV foi essa «caixinha que revolucionou o mundo»? Faço a pergunta e as respostas vêm em turbilhão.
Fez de tudo um espectáculo, fez do longe o mais perto, promoveu o analfabetismo e o atraso mental. De um modo geral, desnaturou o homem. E sobretudo miniturizou-o, fazendo de tudo um pormenor, isturado ao quotidiano doméstico. Porque mesmo um filme ou peça de teatro ou até um espectáculo desportivo perdem a grandeza e metafísica de um largo espaço de uma comunidade humana.
Já um acto religioso é muito diferente ao ar livre ou no interior de uma catedral. Mas a TV é algo de minúsculo e trivial como o sofá donde a presenciamos. Diremos assim e em resumo que a TV é um instrumento redutor. Porque tudo o que passa por lá chega até nós diminuído e desvalorizado no que lhe é essencial. E a maior razão disso não está nas reduzidas dimensões do ecrã, mas no facto de a «caixa revolucionadora» ser um objecto entre os objectos de uma sala.
Mas por sobre todos os males que nos infligiu, ergue-se o da promoção do analfabetismo.
Ser é um acto difícil e olhar o boneco não dá trabalho nenhum. Ler exige a colaboração da memória, do entendimento e da imaginação. A TV dispensa tudo. Uma simples frase como «o homem subiu a escada» exige a decifração de cada palavra, a relação das anteriores até se ler a última e a figuração do seu sentido e imagem correspondente. Mas na TV dá-se tudo de uma vez sem nós termos de trabalhar.
Mas cada nossa faculdade, posta em desuso, chega ao desuso maior que é deixar de existir. Mas ser homem simplesmente é muito trabalhoso. E o mais cómodo é ser suíno... "
Vergílio Ferreira
"Escrever"
(in citador)
pindaro
terça-feira, setembro 20, 2005
Do Portugal antigo
VOZES DO MAR
Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d'oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...
Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d'epopeias? Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
... Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!
Florbela Espanca
pindaro
O inconsciente imortal
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,
Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...
Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?
Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...
Antero de Quental
pindaro
domingo, setembro 18, 2005
Não o pretexto para uma pirueta
Com os costumes andam os aforismos. Assim, eis que eles tomam um carácter mais criticador e vibrante, isto na linguagem de Karl Kraus, homem sagaz e ventríloquo de certas causas que a sociedade não confia à voz pública.
Ele diz, por exemplo: «As mulheres, no Oriente, têm maior liberdade. Podem ser amadas». Ou então: «A vida de família é um ataque à vida privada». Ou ainda: «A democracia divide os homens em trabalhadores e preguiçosos. Não está destinada para aqueles que não têm tempo para trabalhar». Tudo isto, como axioma, lembra Bernard Shaw, esse inglês azedo e endiabrado cujo Manual do Revolucionário fez o encanto da nossa adolescência.
Todavia, o aforismo do homem de letras, se impressiona, quase nunca comove ninguém. O autêntico aforismo não é uma arte - é uma espécie de pastorícia cultural. Não está destinado a divertir nem a chocar as pessoas, mas, acima de tudo, propõe-se transmitir uma orientação. É uma lição, e não o pretexto para uma pirueta.
Agustina Bessa-Luís
Alegria do Mundo
pindaro
Tanto pior para ele
Os homens mais novos não entendem o... como é que vocês dizem?... o erotismo.
Até aos quarenta, caímos sempre no mesmo erro, não sabemos libertar-nos do amor:
um homem que, em vez de pensar numa mulher como complemento de um sexo, pensa no sexo como complemento de uma mulher, está pronto para o amor:
tanto pior para ele.
André Malraux
A Estrada Real
pindaro
sábado, setembro 17, 2005
Transmissão do extraordinário
Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum
eugenio de andrade
pindaro
Pois logo a mim
"Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada"
clarice lispector
"With pleasures too refined to please
With too much spirit to be ever at ease
With too much quickness to be ever thought
With too much thinking to have common thought"
pindaro
Ultramundo
clarice lispector
"Clarice veio de um mistério, partiu para outro.
Ficámos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
Era Clarice viajando nele."
carlos drummond de andrade
pindaro
Coisas efémeras que nunca acabam
"Quels doux supplices
Quelles délices,
De brusler dans les flammes
De la beauté des Dammes"
Antoine Boesset
"As mulheres não são pacientes com o amor. São pacientes com tudo e de tudo fazem hábitos. Do amor é que não. daí que muitas delas deixem de ser honestas e se entreguem a uma forma de criação que é principiar do nada coisas efémeras que nunca acabam. Chama-se a isto Quinta-Essência, a região do fogo e do amor.
(...)
Há, nesse círculo da quinta-essência, uma atracção tão arrebatada que ela serve de linguagem entre gente completamente estranha na raça e nos costumes. Um deleite, que não é dos sentidos mas superior nos seus efeitos,..."
Augustina Bessa Luís
pindaro
quinta-feira, setembro 15, 2005
Pedra de sal
Preto transparente
onde bailam as pernas doiradas
no segredo da pedra de sal
Envolvida de sul e de sol
a carne esculpida ao vento
traz o grito da gaivota
poisada no areal
solino
De limão e lua
sem vergonha
nas ondas.
Lavada e nua
Pelas ancas a espuma,
o sal a ostra salga
com sumos
de limão e lua.
Solino
HOTEL BRAGANÇA
Vencidos da Vida
"Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou – mas do ideal íntimo a que aspirava".
Esta é a denominação dada à fase final da Geração de 70, que corresponde ao fim do século. É a fase em que Eça de Queirós, Antero de Quental e Oliveira Martins renunciam à acção política e ideológica imediata.
Surge a idealização vaga de uma aristocracia iluminada, contraponto do socialismo utópico.
Exemplo disto é o elogio de Eça ao rei, a defesa de uma monarquia agonizante:
"O Rei surge como a única força que no País ainda vive e opera".**
Esta é a fase suprema da ironia queirosiana.
Concretizando, chamam Vencidos da Vida às onze figuras que se reuniam de 1887 a 1889 semanalmente para jantar e conversar no Hotel Bragança, no café Tavares ou na residência de um dos participantes que eram:
Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, António Cândido, Eça de Queirós (só 1889), o conde de Ficalho, o conde de Sabugosa, o futuro conde de Arnoso, o depois marquês de Soveral, Carlos de Lima Mayer e Carlos Lobo de Ávila.
A denominação decorre da renúncia destes intelectuais às suas aspirações de juventude.
Esta desilusão e desistência patente neste grupo, é confirmada pelo suicídio de Antero no ano de 1891. Nos romances de Eça a simbólica da desistência evidencia este desalento que caracteriza uma Geração anteriormente tão activa, tão combativa que tentava revolucionar a sociedade no seio da qual foi criada. Mesmo o personagem tão conhecido que Eça denomina Fradique Mendes é um símbolo desta desistência.
*QUEIRÓS, José Maria Eça de, Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas Esquecidas, Porto, Livraria Chardron, 1929, 1ª edição in MACHADO, Álvaro Manuel, A Geração de 70 – Uma Revolução Cultural e Literária, s/local, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977, 1ª edição, pág. 211.
pindaro
terça-feira, setembro 13, 2005
Há duas maneiras
A Cultura e a Corrupção
Qualquer um pode ser bom no campo.
Lá não há tentações. É por isso que as pessoas que não vivem na cidade são tão terrivelmente bárbaras.
A civilização não é de modo nenhum uma coisa fácil de atingir.
Há duas maneiras de um homem a alcançar. Uma é pela cultura e outra é pela corrupção.
As pessoas do campo não têm qualquer oportunidade de praticar nenhuma delas e, por conseguinte, estagnam.
Oscar Wilde,
'O Retrato de Dorian Gray'
pindaro
A mais crassa das imoralidades
A discórdia é sermos obrigados a estar em harmonia com os outros. A nossa própria vida é o que há de mais importante.
Agora, se quisermos ser pedantes ou puritanos, podemos tecer as nossas considerações morais sobre a vida dos outros, mas estas não nos dizem respeito.
Para além disso, o individualismo é realmente o mais elevado dos ideais.
A moralidade moderna consiste na aceitação dos modelos da nossa época.
Julgo que aceitar o modelo da nossa época será, para qualquer homem culto, a mais crassa das imorallidades.
Oscar Wilde,
'O Retrato de Dorian Gray'
pindaro
A cada virtude corresponde um vício
Habituo-me a só pensar bem dos meus amigos, a confiar-lhe os meus segredos e o meu dinheiro; não tarda que me traiam. Se me revolto contra uma perfídia sou eu, sempre, a sofrer o castigo. Esforço-me por amar os homens em geral; faço-me cego aos seus erros e deixo, indulgente ao máximo, passar infâmias e calúnias: uma bela manhã acordo cúmplice. Se me afasto de uma sociedade que considero má, bem depressa sou atacado pelos demónios da solidão; e procurando amigos melhores, acho os piores.
Mesmo depois de vencer as paixões más e chegar, pela abstinência, a uma certa tranquilidade de espírito, sinto uma auto-satisfação que me eleva acima do próximo; e temos à vista o pecado mortal, a vaidade imediatamente castigada.
Como explicar que toda a aprendizagem de virtude dê origem a um novo vício?
August Strindberg
'Inferno'
pindaro
Pede o desejo, Dama, que vos veja
Pede o desejo, Dama, que vos veja.
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,
Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
Luis de Camões
pindaro
Da bela vista e doce riso
Quando da bela vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão enlevado sinto o pensamento,
Que me faz ver na terra o Paraíso.
Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento;
Assi que, em caso tal, segundo sento,
Assaz de pouco faz quem perde o siso.
Em louvar-vos, Senhora, não me fundo,
Porque quem vossas graças claro sente,
Sentirá que não pode merecê-las;
Que de tanta estranheza sois ao mundo,
Que não é de estranhar, Dama excelente,
Que quem vos fez fizesse céu e estrelas
Luis de Camões
pindaro
sexta-feira, setembro 09, 2005
Cambiador
Já dizia o padre António Vieira ser “inclinação natural anelar ao negado.”
Retira-se de facto sabor acrescido se o alcançado é, antes, recusado.
Melhor ainda, tratando-se de coisa interdita.
E, delícia então, se a coisa é insólita.
O negado mais o proibido mais o insólito casam os cheiros e os sabores por inteiro.
A transgressão, a caça e a guerra amamentam-se disto.
O carácter do pecado navega no encanto da sensibilidade à angústia que fundamenta o interdito, porque transgredir não é negar a proibição, antes é rematá-la, perfazendo-a.
O objecto da dádiva é o descomedimento, soberbo e audaz, e o refluxo das proibições liberta o tumulto da exuberância e a desordem dos clamores e brados.
O paradoxo da tempestade. O rosto anuncia o que o vestido dissimula, o alcance luminoso.
Mas para adivinhar o enigma e ouvir a voz da inacessível solidão tem de se ter bem presente que “em ribeiro grande saltar de trás.”
D. Júlio
terça-feira, setembro 06, 2005
Poisando nas tuas ancas
Brisa
Se eu fosse pintor pintava
De verde, verde e cinzento,
O ventre da onda brava
E os olhos cegos do vento
Só com essas duas cores
Talvez que a tinta ocultasse
Meu prazer, as minhas dores...
Tudo que me lês na face!
E, sob o feltro dos dedos
Poisando nas tuas ancas,
As ondas dos teus cabelos
De loiras ficavam brancas.
Nem sequer falas de gente!
Nem alegria nem mágoa.
Ou luar ou sol poente.
Corpo de cristal com água...
Em vez de carne, cerejas.
Legumes, em vez de peixe,
Antes que os meus lábios vejas
E, presos, um beijo os deixe.
Quem se lembraria então
Do poeta (ou do pecado)
Atirado para o chão
Como um fósforo apagado?
Pedro Homem de Mello
pindaro
Le temps des cerises
tudo é servido
decorado com flores"
Bashô
Acordar - ser na manhã de Abril
a brancura desta cerejeira,
arder das folhas à raíz,
dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher os ramos
o vento, a luz, o que quer que seja,
sentir o tempo, fibra a fibra,
e tecer o coração de uma cereja.
eugénio de andrade
pindaro
sexta-feira, setembro 02, 2005
Salada colectiva de vida
"Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos – tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas – uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio, até, ao destino próprio – inconsciência, carambas ao despropósito quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas – salada colectiva da vida."
bernardo soares
pindaro
A sete chaves
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
Lançá-lo ao mar.
Quem vai embarcar, que vai degredado,
as penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
Lançai-o ao mar.
E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
- A última, de antes do teu noivado.
A sete chaves - a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.
camilo pessanha
pindaro
Balsâmica e fulgente
Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha...
O aroma da mongólia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente...
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com umas finas ondas de escumilha...
E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto num cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,
Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descansas debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.
antero de quental
pindaro
Ópios de ócios
O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e se parte....
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fundo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é boa nem má...
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram-se in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias-férreas com viços daninhos...
Ah! como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
O palácio está em ruínas...Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo...Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
Porque me aflijo e me enfermo?...Ditam-se nuas ao luar
Todas as ninfas...Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram fresca sob meus pés frios...
Secou em teu olar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos...Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah!, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há-de ser o Norte e o Sul?... O que está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque-
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzdas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar a sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tebdo escrito ao centro este lema - "Vitória!"
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
fernando pessoa
pindaro
Campo macio
Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...
Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
- Nem aumentar nem sufocar o pranto...
Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!
Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!
MIGUEL TORGA
pindaro
De ternura amarrotada
Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
David Mourão Ferreira,
Os Quatro Cantos do Tempo
pindaro