sexta-feira, setembro 23, 2005
Taberna-tavolagem da Porta do Ferro
"E assim era, com efeito, como o leitor poderá averiguar por seus próprios olhos e ouvidos, se, manso, manso e disfarçado quiser entrar connosco na mui afamada e antiga taberna do velho Folco Taca, que nos fica bem perto, logo ao sair da Sé, na rua que sobe para os Paços da Alcáçova, sete ou oito portas acima dos Paços do Concelho.
A taberna de micer Folco Taca, genovês que viera a Portugal ainda impúbere, como pajem de armas de famoso almirante Lançarote Pessanha, e que havia anos abandonara o serviço marítimo para se dar à mercância, era a mais célebre entre todas as de Lisboa, não só pelo luxo do seu adereço, e pela bondade dos líquidos encerrados nas cubas monumentais que a pejavam, mas também porque, em um aposento mais retirado e interior, uma vasta banca de pinho e muitos assentos rasos os escabelos ofereciam todo o cómodo aos tavolageiros de profissão para perderem ou ganharam aí, em noites de jogo infrene, os belos alfonsins e maravedis de ouro ou as estimadas dobras de D. Pedro I, o qual, ao contrário dos seus antecessores e sucessores, julgara ser mais rico e poderoso fazendo cunhar moeda de bom toque e peso do que roubando-lhe o valor intrínseco e aumentando-lhe o nominal, segundo o costume de todos os reis no começo do seu reinar.
Micer Folco soubera estender grossas névoas sobre os olhos do corregedor da Corte e de todos os saiões, algozes e mais família da nobre raça dos aguazis sobre a ilegalidade de semelhante estabelecimento industrial. O elixir que ele empregara para produzir essa maravilhosa cegueira não sabemos nós qual fosse; mas é certo que não se perdeu com a alquimia, porque se vê que ele existe em mãos abençoadas, produzindo, ainda hoje, repetidos milagres, em tudo análogos a este.
Era, pois, na taberna-tavolagem da Porta do Ferro, conhecida vulgarmente por tal nome em consequência da vizinhança dessa porta da antiga cerca, onde os ruídos vagos e incertos que sussurravam pelas ruas da cidade soavam mais alta e distintamente, como em sorvedouro marinho as ondas, remoinhando e precipitando-se, estrepitam no centro da voragem com mais soturno e retumbante fragor."
Alexandre Herculano
"ARRAS POR FORO DE ESPANHA"
(in mundo cultural)
pindaro
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