« (...) e quando entrávamos no bar um homem, sempre o mesmo, voltava-se no banco alto e, trazendo o seu copo, vinha sentar-se connosco numa mesa.
E era difícil dizer de que tempo ele vinha; pois das personagens das histórias dum tempo antigo ele tinha a voz, o olhar e os gestos, mas não o destino nem a vida vivida.
Era mesmo como se ele tivesse rejeitado todo o destino, toda a vida vivida, como uma coisa alheia, exterior e falsa, e lhe bastasse aquele momento, aquele bar, aquela conversa, aquele copo.
Era como se ele tivesse querido guardar o seu ser à margem do vivido, por não haver na vida acto nenhum onde o ser pudesse ser cumprido e a existência concreta fosse apenas deturpação, falsificação, profanação.
E assim ele tinha resolvido usar a sua própria vida como não sendo dele, usá-la como os músicos da orquestra usavam os seus fatos alugados...
E o homem que se tinha vindo sentar junto de nós falava misturando as suas palavras com o tempo, com a noite, com o barulho do mar, com o respirar da brisa nas folhagens.
E das suas palavras nascia uma grande imagem que se ia abrindo e desdobrando em inumeráveis espaços.
A sua sensibilidade era tão perfeita que até na própria madeira da mesa a sua mão pousava com ternura.
Enquanto falava abria espantosamente os seus olhos, que eram azuis como o azul duma chama de álcool.
E o seu olhar era desmedido e impessoal como se para além de nós ele olhasse outra coisa.
Talvez:
A memória longínqua duma pátria
Eterna mas perdida e não sabemos
Se é passado ou futuro onde a perdemos
E à medida que ia falando, a imagem que nascia das suas palavras ia-se tornando interior à alma daqueles que o escutavam, como um mito.
Ele era como um limite como um marco que dissesse: Daqui em diante o mar não é mais navegável.
No entanto ele não se confundia com um deus.
Nos deuses ser e existir estão unidos.
Nele a vida vivida nem sequer era serva do ser, nem sequer era o chão que o ser pisava, mas apenas acaso sem nexo, desencontro, acidente sem forma e sem verdade, acidente desprezado.
… esteve um longo tempo calado.
Depois debruçou-se sobre a mesa e disse:
There is a sea,
A far and distant sea
Beyond the farthest line,
Where all my ships that went astray
Where all my dreams of yesterday
Are mine.
(...) »
Sophia de Mello Breyner
("Contos Exemplares"- personagem inspirado em D. José Zarco da Câmara, Conde da Ribeira Grande)
pindaro
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