domingo, abril 24, 2005

Alma até Almada


"Hâtons-nous de succomber à la tentation, avant qu'elle ne s'éloigne. "
Epicuro




"Certo fim de tarde, Bento de Jesus Caraça dispõe-se ao ritual de um dedo de conversa à porta da Brasileira do Chiado. Os amigos vêem-no chegar radioso, iluminado - coisa rara num homem com tantas horas de aulas no Quelhas das Económicas. lnquirem da euforia. E Bento Caraça:

"Sabem, venho do atelier do Almada. Estive lá a tarde inteira. Nunca ouvi tanta asneira na minha vida, mas nunca passei uma tarde tão encantadora."
Si non è vero, è bene trovato.

Nem dá para imaginar o teor das "asneiras" de um esotérico (manipulador de mitos, símbolos, alegorias) face a um matemático - para mais, e presumivelmente, pouco dado a pitagóricas especulações. Porém todavia - matéria de encantamento - exprimiu Caraça o melhor que se pode exprimir da poesia ou, por extensão natural, de toda a arte: se não serve para encantar (lúdica ou convulsivamente), então o que é que anda cá a fazer?

Auto-retratando-se com palavras, Almada incluiu estas de Braque:
"A Arte é feita para perturbar, a Ciência assegura."

Não precisaria de bengala, ele que em diálogo com Fernando Amado já tivera ocasião de dizer "O artista conhece e não sabe", repetindo, em síntese redutora, o que escrevera no "Prefácio ao Livro de Qualquer Poeta":

"O saber é pouca coisa para quem conhece. O saber desencanta o mistério. O conhecimento vive cara a cara com o mistério."

Este primado da arte como conhecimento (e deste como "dianteira" sobre os saberes), atravessa todo o longo, eclético, plural percurso de Almada Negreiros: ao vanguardista que junto a Santa-Rita e Amadeo vinca o "fazer diferente" do primeiro modernismo português (Pessoa e Sá-Carneiro são casos atípicos, circunstanciais de modo) corresponde, em final de vida biológica, o mesmo do painel-testamento riscado na pedra que se mostra no átrio da Gulbenkian.

Se bem entendido fosse, ninguém, à cabeça Azeredo Perdigão, poderia exigir a Almada o repetir-se: já lá iam os painéis de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, com suas arquitraves geometrizantes ao serviço das figuras (como em algum do melhor neo-realismo), agora era a hora de outro salto - e Almada deu-o: à síntese, à súmula, ao arquétipo da geometria e do número, do sinal e do ponto, chamou-lhes, simplesmente, "Começar" - também para que não subsistissem académicas confusões sobre abstraccionismos geométricos "a la" Mondrian ou Malevitch.

"Começar", pois, e sempre: não se conhece melhor definição para vanguarda.
... Que pressupõe rectaguarda. Por exemplo, e para alguns: rectaguarda ideológica.

Ainda não há assim tanto tempo como isso (Novembro de 1996), Álvaro Cunhal-ensaísta (in "A arte, o artista e a sociedade", álbum natalício da Ed. Caminho) chegou e disse: "Falando das artes plásticas e da saga modernista dos anos 30 em Portugal, ninguém deve ter hoje dificuldade em reconhecer o valor estético dos desenhos de Almada Negreiros por se tratar de um defensor militante do fascismo (sublinhado nosso).

Certo que mais adiante reconhece igualmente "valor estético" ao "impressionante choque plástico da girafa em fogo de Dali", porém agora em contraponto com as "concepções, critérios e sensibilidades embotadas por ideias feitas". Ponto de exclamação do tamanho da légua da Póvoa em vertical.

Nem valeria a pena desembrulhar tal trapalhada (Almada "defensor militante" do fascismo - por via de selos e cartazes ? - e o franquista e pró-nazi Avida Dollars branqueado pela "estética") se as palavras de Cunhal-ensaísta não viessem, como vêm, persistir num equívoco ainda hoje recorrente se bem que boleado pela grosa liberal, seja, o de confundir, misturar, expressão artística com idealismo ideológico e assim ferretear "fascista" algum daquele pessoal das artes e ofícios que prestou serviço, trabalho, na arrancada do Estado Novo - desse Estado Novo que até foi, e só foi, "modernista" enquanto o Ferro, editor de "Orpheu", teve influência.
Algum.
Mas não todo, porque também entre a gente colaborante se contaram "progressistas", logo, e por tal, isentos de mancha. Poupem-nos nomes.

À luz crepuscular deste maniqueísmo teríamos então - se de contrária conveniência - como "antifascistas" já agora Pessoa e... Almada, que lá tiveram ocasião de alfinetar o ditador em verso e caricatura.
Terreno minado este - que não leva a lado algum em termos de propriedade, densidade, relevância do trabalho artístico.

Está bem de ver que o fulcro da questão assenta no fosso cavado entre quem defendia (ou defende) o primado ideológico sobre a concepção artística (Jdanov, Goebbels), com os lindos resultados que se conhecem, e quem, não "embotado por ideias feitas", não isenta a arte - como não isenta a vida - de relações, conflituosas as mais das vezes, com o seu tempo histórico mas a querem livre de constrangimentos conceptuais, fora ou dentro das pessoais opções políticas - caso hajam. "A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada de cheirar com cada um" ("Nome de Guerra", 1925).

Será necessário sublinhar que a opção política - esta, sim, militante - de Almada se resume à afirmação de que "se não for por arte não serei de outro modo"? O último capítulo de "Nome de Guerra" tem por título "Finalmente o protagonista toma o partido das estrelas".

Em 1980, num longo e suculento bate-papo com Helena Vaz da Silva que veio a surgir impresso (ed. António Ramos), Júlio Pomar saiu-se com esta: "Hoje costumo dizer que houve dois homens no Portugal próximo-passado que de Portugal sabiam melhor que ninguém e que sem os perceber não há Portugal (Lisboa?) que se perceba: um chamava-se António de Oliveira Salazar e reinou o mais longo reinado da história (que aprendíamos por reinados), outro José de Almada Negreiros e reina ainda no personagem a-cultural que elaborou.

Esses foram dos poucos que conheceram Portugal na carne e por dentro."

Tiro certeiro e matéria fecunda para encartados. Pondo de lado o Manholas, que enquanto tal conhecia de ginjeira a maralha conterrânea (e de aí o ror de anos no poleiro) como não "ver" Portugal, como não "ler" Portugal ("par coeur") na obra de Almada que por aí se estende? No desenho, na pintura, a concretização do pacto sagrado a carecada com Amadeo e Santa-Rita em 1917 e que consistia, não por menos, em trazer à hora europeia, cosmopolita, futurista-e-tudo a pintura portuguesa do "Ecce Homo" e dos Painéis atribuídos a Nuno Gonçalves.

Na poesia, no romance, nos manifestos, nas conferências, nos ensaios (agora em fase de publicação sistemática e rigorosa), a língua "espontânea", salgada, donairosa, inventiva, hiperbólica, que vinha de Gil Vicente e Fernão Lopes e chegava até ele para ele a inventar outra vez e ficar novíssima em folha e toda dele, pessoal e... popular. Logo, com mestres.

Nem por sombras retirar vírgula de importância ao estudo fundamental de José-Augusto França "Almada Negreiros, o Português sem Mestre": acentue-se o "Português", compreenda-se que o "sem Mestre" vai no sentido de quem sabe o que sabe sem recurso a cartilhas e professores, mas leia-se o (relativo e nem por isso original) reparo à luz dessa entidade, dessa "unidade na diversidade" (José Mattoso) que percorre o arco da história e se chama povo, povinho, arraia miúda, homens bons - seu imaginário, sua gesta sofrida, sua mestiçagem cultural necessariamente universalista (em erudito, herdeira de gregos e renascentistas), sua empírica sabedoria, suas falas, sua língua movente.

Toda a obra de Almada comprova a herança que ele escolheu recebida às alturas de mito (o "povo real" tem dias) - e é pilar de Tradição, matriz e força motriz.

Bem no viu Lima de Freitas quando escreveu: "Os intelectuais imaginavam-se demasiado sabedores para ser seus discípulos, a juventude à procura de guerras santas não se interessava pela sua paz rigorosa; porém os homens simples do povo que conheceram o artista, ainda que incapazes de segui-lo intelectualmente, conheciam estar na presença de 'alguém'".

Almada sofria, irradiando uma luz secreta dos olhos desmesurados. (E anotava: "Farei tudo para que se respeite em toda a parte o português mas, pelo menos, na sua própria terra." ) (in "Almada e o Número", Arcádia, 1977).

Ah, o português! E que português obrigava a "respeito" quem dedilhara irónica amargura ao escrever (1931) "É fado nosso / é nacional / não há portugueses / há Portugal"?

... Isso é o que nós, antes de adivinhá-lo, gostaríamos de saber. Talvez aquele - é uma esperança - que ouse brandir a colher de pau (resistir é preciso) como defesa do último reduto caracterizador frente ao caterpillar do Supermercado Global.

Agora que deixou de ser possível a um português querer ser espanhol por causa dos Dantas - "o fado nosso" rasura Portugal do mapa e preenche com dez milhões de proto-cadáveres consumidores - restará, em jeito de corolário, colocar dois pontos:

"Os palermas que não percebem nada da vida são piores que os malandros" - Almada Negreiros, poeta português, universal-em-espírito."



v. silva tavares (2002)


píndaro

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