quinta-feira, maio 26, 2005

De que servem benzeduras?




"É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições, irá para onde o pague."
A.H.




"D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no inverno, sóis de estivas no verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.

Pela manha cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.

Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.

Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dana, era a dama quem cantava.

O porco fica desta vez livre e quite; porque D. Diogo Lopes não corre, voa para o penhasco.

“Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sois, que logo me cativastes?”

“Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.”

“Se já sabes quem eu seja, ofereço a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.”

“Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas são para seguires tuas montarias; para o desporto e folgança de bom cavaleiro que és. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos são eles para te baterem a caça.”

“Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu oferecer digno de vós e de mim que se a vossa beleza é divina, eu sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado?”


“Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitara em arras coisa é de pouca valia; mas apesar disso, não creio que m´o concedas, porque é um legado de tua mãe.”

“E se eu te amasse mais que a minha mãe, porque não te cederia qualquer dos seus muitos legados?”
“Então se queres ver-me sempre ao pé de ti, não jures que farás o que dizes, mas dá-me disso a tua palavra.”


“A lá fé de cavaleiro, não darei uma; darei milhentas palavras.”
“Pois sabe que para eu ser tua é preciso esquecer-te de uma coisa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.


“De que, de que, donzela? — acudiu o cavaleiro com os olhos flamejantes. — De nunca dar tréguas a mourisma, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão.”

“Não é isso, D. Cavaleiro — interrompeu a donzela a rir. — O de que eu quero que te esqueças é do sinal da cruz: o que quero que me prometas é que nunca mais hás de persignar-te.”

“Isso agora é outra coisa” — respondeu D. Diogo, que nos folgares e devassidões perdera o caminho do céu. E se pôs a cismar. E cismando, dizia consigo: — “De que servem benzeduras?


Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente ao apóstolo e duzentas cabeças de cães de Mafamede valem bem um grosso pecado.”

E, erguendo os olhos para a dama, que sorria com ternura, exclamou: “Seja assim: está dito. Vá, com seiscentos diabos.”

E, levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que viera montado.


Só quando à noite, em seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra."



alexandre herculano
(a dama do pé de cabra)


pindaro

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