sábado, maio 21, 2005

Ourivesaria dos ensaios



"Mas a exposição feita por Borges em um francês polido, fantasiando por que alguns criadores se tornam símbolos de uma cultura - Dante, da italiana; Cervantes, da espanhola; Goethe, da alemã - e sobre como Shakespeare se eclipsou para que seus personagens fossem mais nítidos e livres, seduziu por sua originalidade e sutileza."
mvl




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Para encontrar outro prosador tão inteligente como ele é preciso retroceder até Quevedo, escritor que Borges amou e do qual fez uma preciosa antologia comentada.

Pois bem, na prosa de Borges, por excesso de razão e de idéias, de contenção intelectual, há, também, como na de Quevedo, algo de desumano.

É uma prosa que lhe serviu maravilhosamente para escrever seus fulgurantes relatos fantásticos, a ourivesaria de seus ensaios que transmutavam em literatura toda a existência, e seus poemas arrazoados.

Mas com sua prosa seria tão impossível escrever novelas como com a de T.S. Elliot, outro extraordinário estilista cujo excesso de inteligência também entremeou sua percepção da vida.

Porque a novela é o território da experiência humana totalizada, da vida integral, da imperfeição.

Nela se mesclam o intelecto e as paixões, o conhecimento e o instinto, a sensação e a intuição, a matéria desigual e poliédrica, que as idéias, por si sós, não bastam para expressar.

Por isso, os grandes novelistas nunca são prosadores perfeitos. Esta é, sem dúvida, a razão da antipatia pertinaz que Borges sentia pelo gênero novelesco, que definiu, em outra de suas frases célebres, como "desvario laborioso e empobrecedor".

As brincadeiras e o humor sempre rondaram seus textos e suas declarações e causaram inúmeros mal-entendidos.

Quem carece de senso de humor não entende Borges.

Ele foi um esteta provocador, na sua juventude. Embora logo se tenha retratado pelo "equívoco radical" (falava em "equivocación ultraísta") dos anos de sua mocidade, nunca deixou de levar consigo, escondido, o insolente vanguardista que se divertia soltando impertinências.

Estranho que entre os infinitos livros que foram publicados sobre ele não tenha aparecido nenhum que reúna uma boa coleção das impertinências que disse - como chamar Lorca de "um andaluz profissional", falar do "poeirento Machado", alterar o título de uma novela de Mallea (Todo Leitor Perecerá) e homenagear Sábato dizendo que sua obra "pode ser posta em mãos de qualquer um sem nenhum perigo".

Durante a Guerra das Malvinas, disse outra frase, mais arriscada e não menos divertida:
"Esta é a disputa dos calvos por um pente."

São faíscas de humor que mostram gratidão, que revelam que no interior desse ser "corrompido pela literatura" havia picardia, malícia, vida."




mario vargas llosa


pindaro

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